Originalmente publicado em CONJUR
Por Lenio Luiz Streck
“Sim, nós mentimos.” Eis a manchete! Parece surpreendente, não? Mas, de onde será a notícia? É da Folha de São Paulo? Do Estadão? De O Globo? Mistério.
Mas aqui já vai o spoiler.
Leio, na NPR, que documentos do attorney’s office em Manhattan — traduzindo pra nossa jurisdição, o “MP”, a acusação — revelam que os “promotores de lá” mentiram à juíza Alison Nathan, que os questionava acerca de um caso ocorrido meses antes.
O caso? Explico: A desistência, por parte de procuradores, de uma acusação na qual se descobriu que eles não cumpriram com seu dever de disclosure: o dever institucional, funcional, de apresentar as evidências todas — inclusive aquelas favoráveis à defesa, pois (como defendemos, o senador Anastasia e eu, no projeto Anastasia-Streck; por todos, aqui). Vejam. Há quanto tempo falo disso por aqui?
Quando os attorneys office viram que haviam feito bobagem — mais, quando viram que se descobriu que haviam feito ilicitudes —, num país em que se sabe que a acusação não pode agir estrategicamente (por exemplo, a doutrina Brady da qual tanto falo) e deve apresentar todas as evidências, os procuradores abandonaram o caso. O que disseram? Que estavam desistindo por “questões relacionadas ao dever de disclosure“.
Tudo certo, certo? Não. E não. Os procuradores não cumpriram com seu dever institucional, isso foi demonstrado, e eles desistiram. Bem, quase. Porque no meio do caminho tinha uma pedra — a juíza Nathan. Ela não se satisfez.
Ela questionou: Como assim, “questões relacionadas ao disclosure“? A juíza Nathan exigiu, além da mera e vaga retratação e desistência, que os procuradores entregassem todas as evidências favoráveis ao réu, e que indicassem todos os membros-procuradores envolvidos, inclusive supervisores.
Porque estamos falando de uma cultura político-jurídica em que não há apenas o dever de disclosure — de clareza e publicidade nas provas colhidas, sem estratégias —, mas há também accountability. Esse é o ponto.
O Ministério Público de Manhattan não apresenta provas absolutórias. E aí descobrem que foram descobertos. Desistem da acusação. A juíza Nathan, não satisfeita, exige as evidências, exige a responsabilização de quem não cumpriu com o dever funcional. E parece, como explico mais adiante, que a coisa vai ficar feia para os attorney office.
Isso acontece em um país que tem consolidado o dever de disclosure e tem accountability. Os Estados Unidos da América. A força-tarefa da “lava jato” não adora o direito norte-americano? Pois então. Fosse aqui e a casa cairia. Sergio Moro não é apaixonado pelo direito dos “isteites”? Pois então: miremo-nos todos no exemplo da juíza Nathan.
O que aconteceria em um país como o Brasil, que não tem consolidado o dever de disclosure e que não tem accountability? Bem, só se pode arriscar alguns palpites.
Como não há a ideia de disclosure, suponho que já se começaria mais além. Não “só” ocultação de provas, mas fabricação delas. As mensagens trazidas à lume pela operação spoofing mostram total ausência de disclosure e accountability.
Por aqui, por enquanto, o que temos (tínhamos) é um juiz anti-Nathan, quem, em vez de exigir responsabilidade como fez a Dra. Nathan, ajudou a acusação, indicando testemunhas, fazendo promessas e compromissos, criticando o réu, colocando-se como chefe de uma acusação que nunca foi isenta como devia ser.
Ou seja, nesse país chamado Brasil, não estamos falando só de um órgão de acusação que faz agir estratégico e que não age como magistratura (ainda que garantias de magistratura tenha); estamos falando de um juiz que não age “como magistratura” e que faz agir estratégico. Pois é. Anti-Nathan. Somando um juiz anti-Nathan com um MP que faz agir estratégico, sem disclosure, temos a tempestade perfeita.
O que seria/será da reputação do direito desse país chamado Brasil? Como levar a sério o Estado de Direito, o rule of law (Moro usou muito essa expressão, lembram?) num país assim?
Pois é. Vida longa para a juíza Alison Nathan.
Post scriptum: Registro que nos Estados unidos essa história não acabou. A Doutora Alison Nathan também ordenou a liberação de todas as declarações dos promotores e os arquivos relacionados ao caso, dizendo que o interesse público em ver os materiais superava qualquer interesse de privacidade. Nos diálogos (vejam, diálogos!), há coisa como “isso vai dar banho de sangue”; “vamos enterrar isso debaixo de uma pilha de papéis”, coisas, aliás, que não surpreendem a gente daqui do Brazil (sic).
Mais coisas espúrias são reveladas e, conforme isso vai acontecendo, surgem movimentos no judiciário e no legislativo dos EUA para fortalecer a responsabilização e evitar episódios assim no futuro.
No Brasil, a história também não terminou. Porque, por aqui, uma hipotética comunidade jurídica, incluindo doutrinadores e membros da prática, ainda podem escolher fazer a coisa certa. Ainda podem fazer como a juíza Nathan, por exemplo. Os professores poderiam começar a virar o jogo a partir da sala de aula. A própria dogmática jurídica ainda deve muita coisa. Há um imenso déficit epistemológico.
Há juízes em Berlim. A juíza Nathan mostrou que nos EUA também.
Haverá juízes — e doutrinadores, e advogados, e procuradores, e defensores, e estudantes de direito — em nosso país real ou hipotético, que possam, efetivamente, firmar posição e agir em favor de disclosure (o conceito está no início deste artigo) e accountabillity (prestação de contas, transparência, republicanismo)?
A ver.