Originalmente publicado em JORNALISTAS PELA DEMOCRACIA
Por Denise Assis
Precisamos falar de Bolsonaro. Não este, que não cabe no cargo de presidente ao qual foi alçado por uma intrincada conjunção de forças, mas não é aceito pelas Forças Armadas desde o seu inesquecível episódio do croqui (publicado pela Revista Veja em 28 de outubro de 1987), para mandar pelos ares a adutora do rio Guandu, que abastece a cidade do Rio, e alguns quartéis. Foi ali que tudo deu errado. E foi ali que tudo começou.
Amanhã, dia em que o Exército relembra o “aniversário” do que para eles foi a “redentora”, ou seja, o golpe de 1964, Jair esperava ter um reencontro com a história. Nutria a expectativa de organizar de Norte a Sul, em todas as unidades militares, algum tipo de “comemoração”. Tinha, no tempo passado. Restou a ele três Forças sem comando e um governo mal ajambrado.
Na edição de 1987, a Veja denunciou que o capitão Jair Messias Bolsonaro e um outro militar identificado apenas como Xerife iriam explodir bombas “em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, no interior do Rio de Janeiro, e em vários outros quartéis”.
Chamado para ser ouvido pelo seu comandante da época, o general Leônidas Pires Gonçalves, negou tudo e jogou a história no colo da repórter autora da matéria. O general jamais o perdoou pela mentira, mas compulsivo Bolsonaro continuou mentindo. Foi assim que anos mais tarde se aproximou do general Villas Boas, o comandante do Exército de então, se dizendo amigo inseparável de Leônidas Pires nos seus últimos 10 anos de vida. Pura invenção. Mas ganhou a confiança de Villas Boas, e foi agraciado também com um “cabo eleitoral”.
Em 2012, Villas Boas, “injuriado” com a criação da Comissão da Verdade, pela presidente Dilma Rousseff, uniu-se ao chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, Sergio Etchegoyen e conspirou para a sua derrubada. Ali, naquele momento, a política, desapartada da vida na caserna desde a transição democrática, voltou à ordem do dia, desembocando em um tuíte desastrado, cercado de uma história que, para quem entende da vida militar, não faz sentido.
“Villas Boas diz que consultou os comandos e todos concordaram, o que é uma inversão imperdoável de hierarquia. Quem manda não consulta subordinados. Manda e pronto”, dispara uma fonte, com irritação. Ao interceptar o curso das eleições (de 2018) com o seu tuíte, com a cumplicidade de Sergio Etchegoyen e “atravessar” a “ponte para o futuro”, trazendo à cena Michel Temer para o poder, Villas Boas não só politizou as Forças Armadas, como desfigurou o que estava pacificado e estabelecido desde a transição. O ministério da Defesa, criado por Fernando Henrique, jamais estaria nas mãos de um militar. Porque as três Forças se equivalem e não podem se sobrepor.
Pegajoso, sabujo e “agradecido”, Michel tratou de colocar no posto de ministro da Defesa (desde a criação da pasta), o primeiro militar, o próprio Etchegoyen. Ficou bem na fita com Villas Boas, mas péssimo com as demais Forças – Marinha e Aeronáutica -, que passaram a ter de se curvar às ordens do Exército. Uma situação impensável, levando-se em conta que as Forças Armadas se equivalem, se respeitam, mas não se dobram entre si.
Passado o momento “Michel”, os militares contavam com o fato de que o ministério da Defesa voltaria ao seu curso normal. Não foi o que aconteceu. Para agradar ao general, que lhe servira de cabo eleitoral, Bolsonaro colocou no posto mais um militar, submetendo novamente as demais Forças ao Exército. Logo ele, “que nunca jamais foi querido entre os militares, era tido como um fanfarrão, mentiroso, um pouco mais que um vendedor de seguros para as viúvas de militares”, segundo a fonte.
O mal-estar nunca foi digerido. E só fez piorar, quando ele não só passou a “usar” o ministro da Defesa em seus arroubos delirantes e belicistas, como incensou figuras como o general Eduardo Pazuello, colando no Exército a situação crítica a que deixou chegar a pandemia. A leitura entre os generais é a de que isto comprometeu a imagem da instituição perante a sociedade. E, ainda por cima, cobrava do Comando posturas de fidelidade ao seu governo, quando a fidelidade, no entender do comandante Edson Pujol (ele chegou a soltar nota dizendo isto), era ao Estado.
Tudo não é tão ruim que não possa piorar. No domingo, 28/03, Bolsonaro leu – ou soube, pois não consta que leia – a entrevista do general Paulo Sérgio, chefe do Departamento-Geral de Pessoal do Exército, no jornal Correio Brasiliense. Nela o general revelava que a taxa de mortalidade por covid-19 do Exército é de apenas 0,13%, enquanto na população em geral é de 2,5%. Para evitar mortes, explicou o general, ao jornal, “a força-terrestre adotou campanhas maciças de distanciamento social, uso de máscaras, isolamento, testagem em massa para evitar contaminações nos quartéis e investiu pesado em logística para garantir suprimentos hospitalares e equipes médicas nos 60 hospitais da força”. Ou seja, fizeram o dever de casa, enquanto Bolsonaro apostou na morte da população, optando pelo macabro “contágio de rebanho”.
Foi o que bastou para que o “Hitler Pa-tropi” nem esperasse o ministro Fernando Azevedo, da Defesa, dizer bom dia, na segunda-feira, (29/03). Foi entrar, receber o aviso de demissão e o recado de que o próximo seria o comandante do Exército, Edson Pujol. A cena durou três minutos.
Hoje, terça-feira, 30/03, Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica) colocaram seus cargos à disposição do general da reserva Walter Braga Netto, o substituto de Fernando Azevedo no Ministério da Defesa. Houve quem descrevesse uma discussão acalorada entre Ilques, da Marinha, e Braga Neto, beirando a “insubordinação”.
De novo a questão da submissão de duas Forças – Aeronáutica e Marinha – ao Exército, foi o estopim. Mas não só. A expressão: “o meu Exército”, usada num ato por Bolsonaro, ecoa nas fileiras e, de acordo com a “fonte”, nem Caxias, se ressuscitasse, a usaria. “O exército é do Estado”. No mínimo ele teria que usar “o nosso Exército, e não o dele, pois ele não tem Exército nenhum. Isto foi um abuso. Querer politizar a instituição dessa forma, ou subjugar a Força, como se fosse obrigada a apoiá-lo, foi um absurdo”.
Bolsonaro esperava colocar na mesa de “aniversário” do 31 de março, amanhã, os “brigadeiros” e o bolo para comemorar a “redentora”, numa tentativa obstinada de reescrever a história do golpe de 1964, ao mesmo tempo em que demonstra toda a sua insensibilidade, numa atitude desrespeitosa para com as mais de 310 mil vítimas da Covid-19. Não é hora de se falar em comemorações. Junto com os doces, é possível que estejam sobre a mesa presidencial as fichas com os nomes do atual secretário-geral do Ministério da Defesa, almirante Garnier Santos, favorito para o comando da Marinha, e o comandante militar do Nordeste, general Marco Freire Gomes, apontado para o comando do Exército. Para a Aeronáutica, ainda não há um nome definido.
Em resumo. Não vai haver comemoração. Talvez não haja nem sequer “Ordem do Dia”, com nota sobre a data, como sonhava Bolsonaro. É possível que não tenha nem mesmo comandos escolhidos, para organizar a “ordem unida”. Segundo a “fonte”, a irritação entre os comandos é tão grande, que a crise pode se arrastar por uma semana, com os escolhidos das Armas se recusando a assumir comandos para serem novamente “comandados” por um ministro da Defesa do Exército. “Isto não existe”, arrematou. Para quem achou, como Bolsonaro, que havia saído “por cima”, a rampa pode ter mão única: de descida.