Publicado originalmente na BBC Brasil.
O temor de que culpados fiquem impunes e autoridades públicas sejam isentas de responsabilidade permeia o primeiro aniversário do incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
No ano que se passou desde a tragédia, famílias e amigos das vítimas passaram do luto a um crescente engajamento para exigir justiça.
Na vigília feita nesta madrugada para marcar o dia 27 de janeiro, a charge feita para a ocasião – pendurada em um cartaz na fachada da boate e estampada na camiseta vestida por boa parte da multidão – resumia bem o sentimento de muitos familiares.
Uma mulher carrega uma placa com a palavra “JUSTIÇA” e a foto da filha, enquanto um promotor público tapa sua boca e autoridades municipais e estaduais olham com um sorriso irônico, de braços cruzados atrás da boate Kiss. O desenho foi feito para os familiares pelo cartunista Carlos Latuff.
E de fato os clamores por justiça deram o tom da vigília, em que cerca de 600 pessoas se reuniram em frente à boate Kiss.
Sirenes foram acionadas às 3h da manhã, horário em que o fogo começou na boate no ano passado, e a multidão seguiu para um palanque onde organizadores do evento fizeram discursos emocionados – e prometeram não descansar enquanto todos os responsáveis pela tragédia fossem punidos.
“A justiça não foi feita. Estamos muito longe disso. Vivemos a impunidade em Santa Maria”, diz à reportagem da BBC Brasil Adherbal Ferreira, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
“Meu maior temor é que ninguém seja punido. Nós queremos que a punição seja plena e alcance todos que tiveram uma parcela de responsabilidade. Cada um dentro de sua culpabilidade, nem que seja só para pagar uma cesta básica”, diz ele, que perdeu a filha Jennifer, de 22 anos, no incêndio.
A associação foi formada para agregar as famílias após o acidente, mas começou a “pegar pesado na parte judicial” quando os pais começaram a acreditar que estavam sendo “engambelados”, como afirma Ferreira.
“Mas sensação de abandono pelo poder público e de impunidade nos levou à ação.”
A desconfiança irrompeu quando o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) não levou adiante todos os indiciamentos feitos no inquérito da Polícia Civil, que apontou 16 pessoas e responsabilizou outras 12 no âmbito administrativo – entre elas o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer.
Mas o pedido inicial dos promotores de Santa Maria de arquivar o processo contra parte das autoridades públicas não chegou a ser homologado.
A Polícia Civil está realizando duas novas investigações a partir de novas evidências de irregularidades na documentação da Kiss, e agora o processo terá que voltar para Santa Maria para ser novamente contemplado pelos promotores à luz das novas conclusões e provas reunidas – que, de acordo com a delegada responsável, Luiza Souza, deverão ser apresentadas até o fim de fevereiro.
A primeira investigação apura uma denúncia anônima indicando que a consulta popular à vizinhança exigida por lei para que a boate pudesse abrir naquele local pode ter sido fraudada.
Os proprietários precisavam apresentar um abaixo-assinado em que os vizinhos dessem seu aval para o empreendimento – “em um raio de 100 metros, onde as pessoas são verdadeiramente afetadas”, diz Souza.
“Mas cerca de 90% da consulta foi feita por pessoas de áreas que não seriam afetadas. Além disso, verificamos assinaturas duplicadas.”
A partir daí, a polícia resolveu analisar todas as licenças obtidas pela Kiss e constatou diversas irregularidades.
“Durante todo o período em que a Kiss funcionou, em nenhum dia ela funcionou com todas as licenças vigentes. Sempre tinha alguma irregularidade”, diz Souza.
A segunda investigação é sobre um termo de ajustamento de conduta (TAC) gerado em 2010, depois que uma patrulha fez medições sonoras na área e concluiu que o nível de ruído estava muito alto.
“Foram feitas as reformas, mas o MP, que tem engenheiros, só mandou um secretário de diligências para verificar o que havia sido feito”, diz Luiz Fernando Smaniotto, advogado da ASVTM.
“Todo mundo sabia que a boate era irregular, mas ninguém fazia nada. Iam lá, multavam e ficava tudo certo”, diz.
A animosidade da população com o MP ficou escancarada no domingo, no último debate do dia do congresso que vem sendo promovido pela AVTSM para debater o incêndio na Kiss e promover o diálogo sobre políticas de prevenção.
Na mesa representantes da Polícia Civil, MP-RS, Defensoria Pública e advogados da associação, Arigony – que foi aplaudido de pé longamente ao subir no palco.
Já Marcelo Dornelles, Subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP-RS, teve que enfrentar uma tensa sabatina de repórteres e familiares na entrada do evento e foi hostilizado por pais na sessão de perguntas ao término do evento.
Em seu discurso, Dornelles enfatizou o compromisso do MP-RS em apontar os culpados pelo incêndio de Santa Maria “com firmeza e seriedade” e rejeitou um sentimento de “caça às bruxas” – a seu ver instigado pela imprensa em um primeiro momento após o incêndio.
Ele afirmou que o MP-RS deve trabalhar tecnicamente as denúncias que dependem de provas e não podem ser baseadas em revolta ou sentimentos.
Segundo o subprocurador, a atitude “mais fácil e cômoda” dos promotores teria sido encaminhar todos os indiciamentos para o Poder Judiciário.
“Então também estaríamos sendo aplaudidos de pé aqui hoje”, alfinetou. “Fizemos o mais difícil, que é a correta aplicação da lei contra as pessoas de quem efetivamente temos convicção da responsabilidade”, disse.
Em resposta à notória insatisfação da comunidade pela ausência de uma acusação ao prefeito, Dornelles afirmou não haver elementos que o vinculem diretamente ao fato.
Enquanto a população cobra que autoridades sejam responsabilizadas por improbidade administrativa, dois processos criminais correm na Justiça contra os oito réus denunciados inicialmente.
Os dois sócios da boate (Elissondro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann), e dois integrantes da banda estão sendo julgados por homicídio doloso, enquanto outros quatro réus – como o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, estão sendo julgados por fraude e falso testemunho por terem atestado que a Kiss preenchia os requisitos da lei de incêndio.