Publicado na ConJur
Por Lenio Luiz Streck
1. A dura acusação que vem de dentro
Começo com uma acusação dura: “procuradores da força tarefa da ‘lava jato’ desprezaram garantias fundamentais dos acusados”.
Calma. Antes de os protagonistas fazerem uma interpelação, informo que a acusação foi feita por três insuspeitos (veja-se: ainda existem pessoas insuspeitas no país do suspeito Moro-‘Je-ne-me-regrette-rien’ ) procuradores da república, ex-presidentes da Associação de classe da Instituição, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, Wagner Gonçalves, Ela Wiecko de Castilho e Antônio Carlos Bigonha (ver aqui).
Dizem os ex-presidentes: Houve um relacionamento informal incompatível com a missão constitucional do MP, realizado fora dos balizamentos da lei processual penal, com desprezo às garantias fundamentais dos acusados e em desrespeito às normas que regem a cooperação internacional.
E ainda complementaram: Não comungamos com o pragmatismo punitivista de que os fins justificam os meios.
Pronto. Mais nem precisaria ser dito. O fogo vem de dentro. Porque se deram conta de que ou o MPF olha para dentro de si ou corre o risco de sucumbir. É o alerta dos ex-presidentes.
Otimista metodológico que sou, incorrigível, bem sei que tarde é muito melhor do que nunca. Perceber os predadores internos é sempre um primeiro passo importante para a preservação institucional.
De minha parte, como ex-integrante e amicus da Instituição, posso também dizer que sou insuspeito para apontar coisa que sei e que faço os alertas por ter estado quase três décadas no Ministério Público.
2. Carlos e Jerusa: a dura confissão de que a força-tarefa assumiu um lado na politica
Some-se a isso a confissão do procurador Carlos Lima, em rede nacional, de que a força-tarefa e a própria “lava jato” escolheram um lado, o do Bolsonaro e que agora vem corroborada pela procuradora Jerusa Viecili, ex-integrante da “força-tarefa” da “lava jato”, quem disse que ela e seus colegas ajudaram a eleger o presidente Jair Bolsonaro e que deveriam se desvincular dele. O diálogo é de março de 2019. Claro, o interlocutor é, como sempre, ele, Deltinha. Se Bolsonaro (que ela chama de Bozo) “atropelar a democracia, a LJ será lembrada como apoiadora. Eu, pessoalmente, me preocupo muito com isso (vc sabe)”. Fala das rachadinhas de Flávio. E reclama que não houve nenhuma manifestação da “lava jato” quando Bolsonaro elogiou a ditadura militar. Ela indaga: “Não prezamos a democracia?” E outras coisas que apenas mostram o nível do comprometimento político-ideológico da força-tarefa. Afundados até o pescoço nesse magma. Gostei da ironia da Dra. Jerusa, falando que os eleitores do Bozo (sic) desapareceram e viraram amoedistas. Viram? Perceber os predadores internos é sempre um primeiro passo importante para a preservação institucional. O exemplo pela via negativa é tão eficaz quanto qualquer outro. Por isso o atual Procurador-Geral da República adiantou-se e percebeu que no reino de Curitiba havia algo…
3. Os duros diálogos de Robalinho e a dicotomia “advogados agressivos e advogados colaboradores”
Sim, a lava jato não só teve réus colaboradores, como também, segundo se extrai dos diálogos de Robalinho, advogados “não agressivos” (portanto, aceitos pela força-tarefa e pelo juiz Moro) e os “agressivos”, que eram expulsos do jogo. Quem quiser saber mais, acesse aqui.
Fixo-me na “delicadeza” do procurador: “Se tiver um jeito de prender o velho Emilio ou algum familiar próximo de Marcelo Odebrecht ele demite a advogada de combate na hora. Prioridade zero. A cada estocada dela um novo passo na investigação”.
Comparando a situação da Grécia (em crise, na época), Robalinho critica esquerdistas e o possível resultado do plebiscito de lá e diz: “Mais ou menos o que temos de fazer com cliente que contrata advogado agressivo e que não quer acordo. Mostrar o custo. Rs”. Vejamos. O Rs não é símbolo do Rio Grande do Sul e nem de Reais. É risos. Tipo kkk. Deve ser muito engraçado isso, não?
Sabe-se o que fizeram em relação aos advogados “agressivos” (eu mesmo fui consultado por um dos “agressivos” para saber se havia algo a fazer nesse caso de echamiento da causa feita por pressão dos procuradores; lamentavelmente, nada havia a ser feito). O experiente Kakay fez um forte desabafo sobre esse assunto recentemente: “Eu mesmo tive um cliente que me chamou e disse: ‘Kakay, eu te paguei, confio em você, mas recebi a notícia que devo procurar o advogado tal, ligado ao procurador tal e, aí, vou conseguir sair'”. Está no UOL (veja).
De tantas dúvidas que tenho — às vezes penso que sou um velho empirista que apenas descreve o mundo — sobre tudo isso, agora tenho mais uma, até mesmo fruto de minha terrível e inigualável ingenuidade: por que a classificação “advogados agressivos” e “não agressivos”? O que aconteceu? Eis aí um Globo Repórter para ser feito.
Uma pauta ou tema: como nos Estados Unidos (ver o artigo de Red S. Rakoff “Why Innocent People Plead Guilty”, na New York Review of Books), por aqui a delação funciona — e vem funcionando ainda — como pressão para “acordos”. O ponto é que advogados “agressivos” (sic) dificultam a vida dos attorney offices de lá e dos procuradores daqui.
4. Lembro, de novo, minhas previsões sobre Direito AM-DM (mensalão) e Direito ALV-DLV (lava jato)
Sabem o que é isso, não é? Jabuti não é atleta e nem tem nas suas aptidões o “subir em árvore”. São muitos os protagonistas da ascensão do jabuti. Anos de um processo penal ensinado torto nas faculdades, fábricas de reacionários e/ou carreiristas e/ou dogmatas e/ou tudo junto; anos e anos de processo penal tratado como se fosse um “jogo”: um “jogo” no qual, repentinamente, o pênalti pode ser marcado do meio-campo se o juiz assim quiser e, aos litigantes (ups, jogadores), resta tentar prever quais serão os comportamentos e as atitudes e as “jogadas”. Resultado: puro criterialismo. Decisão de juiz suspeito é nula ou inexistente? Enfim, essa dogmática jurídica nos apronta cada coisa…
Previsões? Eis aí o problema do nosso realismo retrô. O Direito acabou sendo ensinado como um jogo (de poder). Mera instrumentalidade. Algo como “para entender o processo penal, precisamos recorrer às ciências comportamentais, à economia, às neurociências, à psicologia, ao pragmatismo e a outros tantos ‘ismos’…”. OK. Recorreram a tanto, recorreram a tudo. O risco? O risco é que se ensine pouco Direito (teoria do Direito, Direito processual e Direito constitucional). Direito, essa coisa velha e em desuso.
Numa palavra final: a história vai contar o que aconteceu nos bastidores da operação “lava jato”. De diárias a ameaças, assim a vida ia. E foi. E vai.
Não me importo, aqui, com essa dicotomia “advogados agressivos” e advogados bem quistos pelas autoridades da operação. Importa-me, somente, falar dos “advogados tido como agressivos”. É destes que falo nesta coluna.
Por isso a OAB deveria lhes fazer um desagravo.