‘Fracasso do Brasil no combate à pandemia é reflexo fiel do negacionismo de Bolsonaro’, diz ao DCM eurodeputado espanhol

Atualizado em 30 de abril de 2021 às 9:02
O eurodeputado Miguel Urbán Crespo

O descrédito de Jair Bolsonaro é mundial. Um desastre na pandemia. Um desastre no meio ambiente. E o resultado, segundo o eurodeputado espanhol Miguel Urbán Crespo, leva o Brasil para um apartheid.

Na visão do parlamentar, a divisão entre países ricos e pobres está se aprofundando na busca pela vacina. “Ninguém vai estar seguro até que todos estejam seguros”, afirma.

O Brasil de Bolsonaro, avalia, ficou aquém de suas capacidades. Em entrevista ao DCM, ele diz que “o ritmo da vacinação está 10 vezes abaixo do que poderia ser o de um país como o Brasil”.

No Parlamento Europeu, ele expressou recentemente sua preocupação com o desmatamento desenfreado. As promessas de Bolsonaro na cúpula do clima de Joe Biden não inspiraram confiança. “São palavras ao vento. Bolsonaro não é crível quando fala em proteger o meio ambiente”.

Diante da política de Brasília de perseguição aos povos indígenas em prol de um agronegócio tóxico, o eurodeputado critica uma postura complacente da União Europeia ao mesmo tempo em que aponta o repúdio de seus colegas ao acordo de livre-comércio negociado com o Mercosul.

O eurodeputado do partido Anticapitalistas confirma as previsões de isolamento do Brasil para a temporada de turismo europeu do próximo verão por causa de uma vacinação insuficiente. Ele critica essa política porque acredita que só a quebra de patentes e a planificação da produção de vacinas podem solucionar a crise sanitária, ainda que o presidente brasileiro e a UE sejam contra.

“Lula foi um defensor, por exemplo, da quebra das patentes dos medicamentos para a AIDS. Um país como o Brasil defendendo junto a outros países do Sul a quebra das patentes teria sido um impulso para acabar com os lucros das multinacionais e defender os direitos dos povos”.

DCM: Por que o senhor decidiu se expressar no Parlamento Europeu, nestas últimas semanas, sobre a gestão da pandemia de Covid-19 no Brasil?

Urbán Crespo: Foi no contexto do marco da delegação da União Europeia e do Brasil. Estamos muito preocupados com a situação da pandemia no Brasil.

Nesse debate que tivemos entre as autoridades do Parlamento Europeu com as autoridades brasileiras, neste caso com o embaixador representante na União Europeia, um dos pontos era justamente a pandemia.

O Brasil se converteu numa certa medida no epicentro da pandemia e logo o epicentro da pandemia na América Latina. Acumula 12% das mortes e 10% dos contágios a nível mundial. Preocupa sobretudo o ritmo da vacinação porque está 10 vezes abaixo do que poderia ser o de um país como o Brasil. Além do fato de que essa situação está produzindo mutações.

Eu e nosso grupo político temos defendido que ninguém vai estar seguro até que todos estejam seguros. Até que se obtenha uma imunidade internacional, não estaremos seguros. Nascerão novas variantes como a que estamos vendo no Brasil.

Seria necessário liberar as patentes. Defendemos que o Brasil tenha um acesso para poder produzir vacinas. Mas é claro que, com o governo que têm, negacionista da ciência, negacionista da própria doença até pouco tempo atrás, creio que é muito difícil.

DCM: A comissária europeia Ursula von der Leyen disse que os turistas americanos serão bem-vindos em toda a Europa no próximo verão. Pode-se dizer o mesmo sobre os turistas brasileiros?

Urbán Crespo: O grande problema é que estamos aprofundando as desigualdades Norte-Sul. É um problema mais profundo que o problema do turismo. Segundo os Médicos Sem Fronteiras, os 12 países mais ricos detêm 98% das doses das vacinas.

Estamos assistindo a um apartheid sanitário que pode se refletir na limitação à liberdade de movimento. Os países ricos que tiveram acesso às vacinas terão liberdade de movimento. Os países do Sul que não tiveram acesso às vacinas, não. Acreditamos que isso é profundamente discriminatório.

Temos reivindicado à comissária Ursula von der Leyen que, para voltar a viver de modo seguro, para poder acabar com a doença e voltar à normalidade de circulação, é necessária a quebra das patentes e uma planificação pública da produção para assegurar o acesso universal às vacinas.

O sistema COVAX, que a União Europeia tem defendido, é um modelo público-privado profundamente insuficiente, além de ser injusto. Não acreditamos na caridade das vacinas, mas na solidariedade e no fomento à própria produção local. Neste caso, cremos que o Brasil poderia ser um polo, pelas capacidades que tem como país no subcontinente latino-americano na instrução e produção de vacinas.

Mas aqui nos deparamos com dois empecilhos: o empecilho das farmacêuticas multinacionais, que estão tentando fazer prevalecer seus lucros à custa da vida de milhões de pessoas.

Os sócios dessas farmacêuticas, neste caso podemos considerá-los como mordomos das multinacionais e Bolsonaro é um desses mordomos, que governa mais para os lucros das multinacionais do que para benefício da maioria da população.

DCM: Isso quer dizer que o Brasil, caso a situação sanitária e farmacêutica atuais persistam, estará isolado no próximo verão na Europa e no mundo?

Urbán Crespo: Isso é o que as autoridades estão dizendo, não é o que eu estou defendendo.

De fato, será aprovado no plenário o que se chama de “passaporte verde”, um passaporte de vacinação para facilitar a circulação entre os países da União Europeia. Quer-se extrapolar esse modelo para outros países como os Estados Unidos. É evidente que do modo como está o Brasil não poderia obter essa liberdade de movimento que podem ter outros países.

Como eu disse, não é o que eu estou defendendo. Eu não quero salvar a temporada de turismo da Europa. Eu quero salvar os povos tanto da Europa quanto a nível internacional do vírus e dos que estão tentando colocar a economia acima da vida das pessoas, como Bolsonaro ou a própria Ursula von der Leyen.

DCM: Ainda no Parlamento Europeu, o senhor mencionou a gestão ambiental do presidente Jair Bolsonaro. Alguns dias depois, ele prometeu no encontro mundial pelo clima do presidente americano Joe Biden: a redução em 50% nas emissões de carbono até 2030; a neutralidade carbônica até 2050 e a duplicação dos recursos para fiscalização ambiental. O senhor acredita nessas promessas?

Urbán Crespo: Não. Evidentemente não. Acredito que Bolsonaro estava tentando se readaptar à nova situação, com a mudança da administração Trump nos Estados Unidos e a chegada da administração Biden.

São palavras ao vento. Desde o início do governo Bolsonaro, o desmatamento aumentou no Brasil, o agronegócio se expandiu, assim como o abate ilegal, a perseguiçao às comunidades indígenas e originariás e políticas agressivas e lesivas contra o meio ambiente.

Bolsonaro não é crível quando fala em proteger o meio ambiente. Ele mesmo se declarou há pouco tempo como um negacionista do aquecimento global, da emergência climática que vivemos. Suas políticas foram um reflexo fiel desse negacionismo.

DCM: Qual é o papel da comunidade internacional diante do que acontece no Brasil?

Urbán Crespo: Há diversos níveis de análise. Há um certo estupor frente às políticas capitalistas e agressiva da extrema direita em relação às comunidades LGBT, aos direitos das mulheres, mas também há muita hipocrisia.

A Europa, que diz defender a ecologia, o meio ambiente, os direitos humanos, não tem nenhum problema em seguir negociando com a administração Bolsonaro, por exemplo o acordo com o Mercosul.

Fazia 20 anos que as negociações estavam interrompidas. Estava praticamente estancado. Teve uma aceleração com a chegada da administração Bolsonaro no Brasil. E isso não é porque a União Europeia gosta mais ou menos de Bolsonaro, mas porque ela deixou para trás a defesa dos direitos humanos diante de um cenário de intensificação da competição econômica.

A aceleração de acordos como com o Mercosul ou a aceleração de outros acordos, como com o Chile, respondem a uma lógica de competição do mercado latino-americano com a China, em que vale qualquer coisa para ocupar um espaço antes da China.

Muitas vezes a União Europeia não se sente cômoda com as declarações de Bolsonaro, mas na realidade está apoiando suas políticas neoliberais e suas políticas de desmatamento, da agroindústria.

A hipocrisia da União Europeia chega a um ponto tão extremo que proibimos pesticidas na Europa, que vendemos ao Brasil, o que é absurdo porque em seguida importamos alimentos brasileiros com um risco químico que recusamos. Esses são os dois pesos e duas medidas que vive a União Europeia, em que há sempre belas palavras pelos direitos humanos mas o que prevalece é a política comercial.

DCM: Seu país, a Espanha, parece favorável ao acordo de livre-comércio com o Mercosul. Quais são as probabilidades de que o acordo seja ratificado pelos Estados-membros?

Urbán Crespo: Neste momento, há um repúdio considerável. Tem que haver unanimidade (para a ratificação), o que não há. Isso está sendo utilizado pela União Europeia para pressionar por um acordo ainda mais favorável aos interesses das multinacionais europeias.

Creio que os únicos interesses que têm são das multinacionais europeias. Agora ela está tentando verificar como ratificá-lo sem um consenso. Para isso, é possível que a União Europeia tente partir o acordo em dois e facilitar a possível ratificação.

De fato, vimos como o presidente do Parlamento Europeu, o socialista David Sassoli mandou uma carta ao Senado brasileiro, na qual dizia que um dos objetivos do Parlamento Europeu era aprovar este acordo antes que terminasse a legislativa.

Nós nos queixamos do presidente Sassoli porque não pode falar em nome de todo o Parlamento porque há muitas reticências de muitos grupos e muitos deputados a este acordo comercial.

Diante dessa situação, em que há grande resistência no Parlamento Europeu, em que há vários países que se mostraram contrários, como é o caso da Áustria, o que inclusive está previsto em seu acordo no governo de coalizão e o parlamento austríaco já votou para se negar a ratificar este acordo, é possível que se tente partir o acordo em dois para facilitar e acelerar a sua ratificação. Isso significaria um artifício legal e administrativo para não necessitar do consenso.

DCM: Agora que Lula está de volta à cena política, qual seria o efeito internacional para o Brasil se for eleito presidente no ano que vem?

Urbán Crespo: Seja Lula ou qualquer outro candidato progressista que ganhar teria efeitos muito importantes na região, em primeiro lugar, e também a nível internacional.

Denunciamos a guerra jurídica, o “lawfare”, à qual Lula foi submetido. Foi totalmente improcedente, como mostrariam os tribunais brasileiros. Foi uma estratégia das elites porque as pesquisas mostram que, se Lula tivesse se candidatado, Bolsonaro não seria presidente neste momento e a situação no Brasil seria muito diferente.

Vê-se que Lula foi um defensor, por exemplo, da quebra das patentes dos medicamentos para a AIDS. Um país como o Brasil, defendendo a quebra das patentes junto a outros países do Sul, países também com um peso importante como o brasileiro, teria sido um impulso para acabar com os lucros das multinacionais e defender os direitos dos povos, o que seria uma magnífica notícia se acontecesse no Brasil.

Qualquer derrota pela esquerda a Bolsonaro vai ser uma notícia magnífica para a região e a nível internacional.