Brasília é uma sinfonia em constante composição. Concebida por Juscelino Kubitscheck em meio à campanha eleitoral de 1955, foi rascunhada publicamente pela primeira vez num comício em Jataí (GO). Mas, sua inauguração em 21 de abril de 1960 só foi possível graças ao talento de JK para unir pessoas diferentes, não se importando caso fossem divergentes ou convergentes, em torno de um sonho comum: a nova capital brasileira.
Na segunda metade da década de 1950, a Nação buscava rumos para seguir em frente depois do golpe brutal recebido com o suicídio de Getúlio Vargas que foi o epílogo de um processo de chantagens e golpes cometidos por militares contra a parcela mais arejada e lúcida dos brasileiros. Agora, em 2021, urge livrar o Brasil da figura pérfida, nefasta e perversa de Jair Bolsonaro. Só tal livramento fará os brasileiros reencontrarem a nostalgia e a esperança daquele um País que sabia sonhar e olhar adiante, como nos tempos de Juscelino.
Tão logo tomou posse, o que lhe foi assegurado pelo general legalista Henrique Teixeira Lott porque a direita golpista, então abrigada na UDN, queria atropelar o resultado das urnas, Kubitscheck convocou dois gênios para que conferissem acordes e harmonia à peça coletiva.
O arquiteto Oscar Niemeyer e seus palácios de vãos inusitados deram leveza e curvas ao concreto; o urbanista Lúcio Costa traçou as linhas singulares de uma metrópole sem esquinas, com uma escala bucólica e inusitadamente fluida.
Mas, a Cidade Modernista não sairia da prancheta da dupla genial se o engenheiro Israel Pinheiro não fosse um pragmático tocador de obras; ou se o agrônomo Bernardo Sayão não tivesse se revelado um agrônomo com antológica capacidade de liderar peões e desenhar trincheiras para fundações de concreto em meio ao cerrado virgem.
A ideia original do líder político virou projeto do trio formado por ele, um arquiteto e um urbanista e, depois, evoluiu para partitura do quinteto que incorporara o engenheiro e o agrônomo.
Contudo, a suavidade genial dos monumentos de Niemeyer, como uma Catedral em forma de mãos que se unem em oração, ou um Palácio da Alvorada suspenso por colunas abertas que só tocam o chão em pontos milimetricamente precisos; ou ainda os vãos livres dos palácios do Planalto e do Itamaraty, careciam de alguém que fizesse cálculos estruturais como quem lê e escreve poemas. Daí o inigualável Joaquim Cardozo, “o homem mais culto da Terra”, como dizia o próprio Oscar Niemeyer, deixou Recife para morar nos barracões da Novacap – a empresa pública encarregada de administrar as obras da nova capital – e entrar na História da composição coletiva de Brasília.
Engenheiro estrutural, poeta, dramaturgo, tradutor, Cardozo deu alma – o sopro vital – às curvas no concreto sonhadas por Niemeyer. Só a partir dele, que na década de 1940 revelara nas colunas de um teatro recifense a magia e a possibilidade de parábolas verticais, os monumentos do arquiteto genial puderam pontificar e dançar na urbe esboçada a nanquim por Lúcio Costa.
Juscelino era gregário e pragmático, sorria ao falar sério e calçava meias sem tirar os sapatos.
Lúcio Costa era severo com horários, rígido nas cobranças e social-democrata no comportamento.
Israel Pinheiro era duro como executivos de linhas de produção e reacionário na forma de ver o mundo.
Oscar Niemeyer era o comunista, alma de artista, ferrenho defensor de suas ideias e compromissos.
Sayão, um populista cativante que soube se fazer admirado pelos subordinados – em sua maioria, o proletariado do imenso canteiro.
Cardozo, o intelectual asceta capaz de virar noites na mata, sob a luz de tochas bruxuleantes, calculando curvas nas equações que iam governar o entortar dos vergalhões de ferro das futuras colunas de uma Catedral Metropolitana tão bela quanto inusitadamente diferente.
Só a união de tantas diferenças foi capaz de materializar o sonho de Brasília como a cidade pujante que ela é hoje. E só Brasília poderia ser o palco em que outro pernambucano, que não tem nada do ascetismo de Joaquim Cardozo, mostrou como se pode fazer política com o refinamento de um tenor na ribalta de uma ópera: esta semana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, torneiro mecânico de ofício, tratou de construir pontes e rascunhar acordos políticos com a destreza dos grandes mestres da engenharia e da diplomacia.
Lula foi vítima de um processo judicial corrompido pela perseguição de um juiz suspeito e incompetente para julgá-lo.
Sérgio Moro, agora consultor de uma empresa de recuperação de ativos de corporações falidas (algumas foram à falência por atos dele enquanto se travestia de magistrado), era suspeito porque passou por cima de normas e regulamentos do Judiciário para conservar-se responsável pelas ações contra o ex-presidente e por ter urdido com procuradores as linhas de acusação ao ex-presidente. Ou seja, mandou às favas a necessária imparcialidade que se exige de um julgador. A incompetência era técnica, só não menos relevante: foi preciso que o ex-juiz e a Procuradoria Geral da República manipulassem processos e decisões judiciais, inclusive de tribunais superiores, para que todas as ações contra o ex-presidente da República permanecessem na Vara Federal entregue a Moro em Curitiba, no Paraná. Ali não era o “juízo natural” das ações. Contudo, a higidez técnica da Justiça não foi observada.
Só depois de Lula ter permanecido 580 dias preso ilegalmente em Curitiba, cumprindo sentença irregular e, sobretudo, injusta decretada por Moro, o Supremo Tribunal Federal decidiu rever o caso e corrigir todos os crassos erros judiciais. A revisão, entretanto, não fez regredir a cronologia dos fatos: o Brasil não poder ter Lula como candidato nas urnas de 2018. Ela sagraram Jair Bolsonaro presidente com a ajuda tão ilegal quanto escandalosa de Sérgio Moro, que virou ministro da Justiça e depois desafeto do extremista de direita que ocupa a presidência da República.
Ao arrepio da lógica, comentaristas da mídia tradicional brasileira e opinionistas de plantão cobravam de Lula a tal “autocrítica do PT” e uma nova “Carta aos Brasileiros”. A autocrítica seria a admissão de erros políticos e falhas na gestão de Dilma Rousseff, sobretudo na área econômica, que teriam justificado o impeachment sem crime de responsabilidade de 2016. A reedição de uma “Carta” semelhante à de 2002, quando Lula deixou claro para empresários e executivos, sobretudo gestores de fundos financeiros, que não faria de seu futuro governo uma revanche social, era soprada pelos administradores de fortunas que movem o mercado financeiro a partir dos escritórios envidraçados da Avenida Faria Lima, em São Paulo, para seus ventríloquos espalhados em redações, sites, blogs e think thanks espalhados pelo País.
Com inteligência e assertividade ímpares, Lula driblou a todos e calou todos em cinco dias brasilienses. Instalado sob todos os cuidados sanitários num complexo de salas de um hotel na capital, tratou de dar curso a uma agenda ampla de diálogos políticos que deixou a direita perplexa e a própria esquerda surpresa.
Com um mapa político imaginário estendido sobre a mesa, deu curso às negociações que envolviam os 13 maiores colégios eleitorais estaduais do Brasil. Dois deles, São Paulo e Pernambuco, seu estado natal e o estado onde fez carreira sindical e política, não estavam sob escrutínio da temporada de trabalho no Planalto Central.
Tem cuidado deles pessoalmente e com afinco, como quem borda flores em usando pontos Renascença. Os nós dos pontos dados a partir do Recife podem levá-lo a ter de volta em seu palanque de 2022 o PSB. E a costura paulista, que também passa pelos socialistas pernambucanos, destina-se a montar no estado um palanque com costura reforçada e ampla. De Guilherme Boulos e Luíza Erundina, a Fernando Haddad, Márcio França e até um rascunho de tela com Geraldo Alckmin passam pelo tear lulista.
Em Minas Gerais o diapasão dos contatos do ex-presidente tem a dimensão do fabuloso rol de amigos do seu e ex-ministro e grande parceiro de truco e biriba Walfrido dos Mares Guia. Empresário bem-sucedido na área de Educação e de Biotecnologia, Mares Guia conversa com todo mundo no segundo maior colégio eleitoral do País. Em razão disso, o PSD do prefeito Alexandre Kalil e do senador Antônio Anastasia, nomes sem muitas arestas com o maleável PT mineiro, entrou na cesta de linhas e agulhas. A tentativa de encontrar o presidente do Senado Rodrigo Pacheco, do DEM, não deu certo – o que não significa que tenha dado de todo errado. Pacheco registrou o gesto de Lula em procurá-lo para uma visita institucional. Lá na esquina, sabe o ex-presidente, Jair Bolsonaro vai tratar mal o presidente do Senado porque o atual ocupante da presidência faz isso com a naturalidade de quem jamais aprendeu a domesticar os maus bofes. Quando isso acontecer, Pacheco vai procurar o petista – e será bem recebido.
O Rio de Janeiro, terceiro maior colégio eleitoral brasileiro e estado onde o PT nunca obteve sucesso em campanhas majoritárias, recebeu atenção especial do Lula na encarnação de engenheiro de pontes. Dialogando com o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e por meio dele com o vereador e ex-prefeito Cesar Maia, o petista concretou as bases do salto exponencial do PSD carioca: Os Maia e o prefeito do Rio, Eduardo Paes, anunciaram filiação à legenda. Todos estão no DEM, de cuja costela saiu o PSD de Gilberto Kassab quando ocorreu o retrofit do antigo PFL, o Partido da Frente Liberal dos tempos da redemocratização. Marcelo Freixo, do PSOL, e Alessandro Molon, do PSB, ambos infelizes em seus atuais partidos, não foram esquecidos – muito menos atropelados. Receberam mesuras de convidados especiais.
Lula deixou claro, sobretudo para os fluminenses, que apostará muito também na eleição para a Câmara dos Deputados. Da Câmara de Vereadores do Rio, por exemplo, podem ascender a Brasília como deputados Chico Alencar e Tarcísio Motta, do Psol; Lindbergh Farias, do PT, além do próprio Cesar Maia, eventualmente pelo PSD, caso o projeto futuro de Rodrigo Maia esteja fora da Câmara dos Deputados.
Kassab e seu PSD serão aliados fortes em terras paulistas, essenciais em Minas Gerais e no território fluminense. Mas, também estão no jogo pragmático do ex-presidente na Bahia, com o senador Oto Alencar, que tanto pode ser candidato ao governo do estado quanto à reeleição para o Senado. Alencar também esteve com Lula. Seu colega e amigo Jaques Wagner, idem. Wagner colocou-se à disposição para seguir cuidando da receita de um acordo político baiano destinado a fazer dos adversários apenas o camarão seco que se jogará por sobre o acarajé que está sendo preparado como obra de arte.
Os pessedistas ainda têm em suas hostes o senador Omar Aziz, do Amazonas, que deverá integrar uma aliança eleitoral no Norte.
Ao abrir a planilha “Ceará” em sua mesa de trabalhos no hotel de Brasília, Lula mandou chamar ao seu encontro o ex-senador Eunício Oliveira, do MDB. Adversário regional figadal de Ciro e de Cid Ferreira Gomes, o petista pediu a Eunício para traçar um desenho dos embates futuros nas dunas do litoral e na terra rachada dos sertões cearenses. Feito isso, pediu para que o deputado José Guimarães, o mais experiente parlamentar do PT local, entrasse na sala. Camilo Santana, o governador petista do Ceará, é amigo de Eunício. Com a leveza de um trovador das serras do Crato, Lula desenhou alianças que pareciam estrofes de cordel para quem deseja ver em terras de Tasso Jereissati e Ciro Gomes uma união de MDB e PT que açambarque PSB e PSD.
Do Rio Grande do Sul, aonde Lula quer ver o PCdoB de Manuela D’ávila na chapa majoritária, ao Piauí do governador petista Welington Dias que está momentaneamente adversário do senador Ciro Nogueira, presidente do PP e líder da tropa-de-choque bolsonarista no Congresso, nenhum estado da Federação passou batido ao escrutínio do ex-presidente na formulação dos palanques.
As agendas com nas embaixadas da Alemanha, do Reino Unido e da Índia, nas quais falou de Meio Ambiente, de vacinas e de blocos econômicos, além de cooperação para o combate à fome, e mesmo os compromissos desmarcados com a delegação diplomática russa por força de pressão do governo Bolsonaro, fizeram Lula prescindir de dar explicações em torno da dimensão de sua capacidade de diálogo e de impor respeito na cena internacional.
A cortesia e a paciência de Lula para escutar a todos e não lhes cobrar nada impactaram os interlocutores que não o conheciam. Tal postura humilde causou espécie, sobretudo, naqueles que se posicionaram contra Dilma Rousseff no processo de impeachment de 2016 – que, afinal, foi um golpe por ter sido perpetrado sem a existência de crime de responsabilidade. Um deles recebeu uma provocativa mensagem por Whatsapp de um amigo: “Eu não disse que todo pernambucano, quando se chama Lula, é um sedutor compulsivo?”. “Kkkk. Verdade e impressionante”, respondeu o político que faz carreira na direta centro-liberal.
Em uma semana de Brasília depois de reingressar na cena política formal, candidatíssimo a presidente em 2022, com os direitos políticos restaurados pelo Supremo Tribunal Federal, Luiz Inácio Lula da Silva mostra que mastigou todas as abelhas vivas que lhes foram lançadas pelos adversários e agora sopra flores de primavera. Talvez, daquela primavera que ele preconizou em seu discurso magistral antes de entregar e ser recolhido em Curitiba. O ex-presidente engoliu sapos de todas as cores, inclusive os amarelos, perversamente venenosos. Mas, no lugar de um ódio aziago, o refluxo desse processo é a base de um novo projeto nacional que passa por conciliação e reconexão da sociedade.
Se Joaquim Cardozo fazia poesia com equações matemáticas e, a partir delas, tornava possível as curvas de concreto propostas pelo gênio de Niemeyer para uma Brasília de sonhos, Lula escreve a prosa política como nenhum outro profissional desse métier. Seu prosear leve contém os sentimentos de um mundo que só poetas sabem enxergar. Afinal, cometeu Carlos Drummond de Andrade em Sentimento do Mundo: “Tenho duas mãos/ E o sentimento do mundo/ (…) / Os camaradas não disseram/ que havia uma guerra/ e era necessário/ trazer fogo e alimento./ Sinto-me disperso/ anterior a fronteiras,/ humildemente vos peço/ que me perdoeis.” (…).
Esta semana, em Brasília, Lula rascunhou poemas com as letras duras da política enquanto construiu pontes. Houve poucos como ele, em toda a História, com capacidade para fazê-lo.