Por Kakay
“Prouvera aos Deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido!
Prouvera antes ao Destino que os Deuses o tivessem!”
– Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, no “Livro do Desassossego”.
Todos nós temos um mecanismo de fuga que nos permite enfrentar os nossos momentos de desespero, de dor dilacerante. Nos últimos meses, o massacre frequente do noticiário sobre milhares de mortes por dia, sobre a falta de oxigenação para os doentes e de leito nos hospitais, de certa maneira, nos anestesiou. Ninguém suporta mais acompanhar a realidade.
É uma infinita angústia acompanhada de um medo e da falta de sonhos. Quando a pessoa deixa de sonhar e se vê obrigada a viver o caos diário, existe um risco real de embrutecimento dos sentimentos, até como um mecanismo de defesa. E a capacidade necessária de indignação começa a sentir, também, a falta do ar que impulsiona a resistência.
Quando se contam números de mortos sem conseguir identificá-los, sem dar os nomes às vítimas deste verdadeiro genocídio, há uma tendência das pessoas se afastarem da realidade nua e macabra para conviverem com a notícia. É como se a informação da quantidade de óbitos pudesse quase se dissociar das mortes em si, dos cadáveres, das dores da partida e do desespero das perdas.
Já não se levantam os olhos do livro, nem se interrompe a conversa sobre futebol para prestar atenção no anúncio de que morreram 3.215 pessoas somente hoje no Brasil. A informação de que chegamos a 411 mil óbitos vem para confirmar as previsões. Ainda assusta, um pouco, o prognóstico de que poderão ser 800 mil mortos em agosto. Assusta pelo número, pelo medo de ser alguém aqui da sala ou um parente próximo.
Na realidade, a não ser quando dentre os mortos anunciados está incluído um parente querido ou um amigo, a notícia compõe um quadro de horror diário degustado com uma xícara de café ou um copo de vinho.
A necessidade de permanecer vivo nos faz fechar os olhos e os ouvidos. Certa insensibilidade nos invade e nos domina momentaneamente para nos preservar. Recorro-me a Manuel Bandeira, no poema “Momento num Café”:
“Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.”
De repente, como um raio que tenta romper o círculo invisível de giz que serve de aparato para não enlouquecermos, nós nos pegamos perplexos e emocionados com a partida prematura do grande gênio do humor, o ator Paulo Gustavo. Como mostrar a morte de uma pessoa que está radiante, alegre, gargalhando em todas as filmagens? A imagem dele não combina com dor, com tristeza, com sofrimento. É preciso encontrar uma forma artística de mostrar o humor inteligente e escancarado que nos tira da mesmice que virou a vida.
As notícias sobre o desastre sanitário dividem o país com informações de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) instalada para, exatamente, descobrir os responsáveis por mortes como essa. Os amigos dele perguntam o óbvio: como morrer aos 42 anos se já existe vacina para o vírus? E a dúvida sobre o que teria acontecido se esse governo assassino tivesse comprado a vacina quando foi oferecida em junho de 2020: teria o Paulo Gustavo conseguido se vacinar?
E a notícia da morte vai ficando real com a informação de que ele tinha revelado o medo de não ver os filhos crescerem. Com os fatos que vêm à tona sobre a generosidade do grande coração que ele tinha, as diversas doações anônimas que fazia e a solidariedade com todos os que trabalharam com ele. O seu lado humano dá um rosto para a morte. Logo ele, que fazia o isolamento social, que pedia a vacina, que usava máscara e respeitava a ciência. Um homem que priorizava a alegria, o coletivo, o amor. É simbólico: uma pessoa que viveu para dar alegria tem, na sua trágica morte, uma mensagem de alerta mostrando que as mortes são reais, que esse momento não é um filme de terror, que é a tal realidade pura, nua e crua. Lembro-me de Rainer Maria Rilke:
“Aceita tudo o que te acontece
O belo e o terrível
É só andar. Nenhum sentimento é estranho demais.
Não deixem que nos separem.
Perto está a terra que chamam de vida.
Tu a reconhecerás pela sua gravidade.
Dá-me a mão.”
Neste infeliz país, no mesmo dia da morte de Paulo, temos que ouvir o desvairado do presidente da República atacar a China, nossa maior fornecedora de insumos da vacina, acusando levianamente o país e sugerindo que o vírus foi criado em laboratório, “numa verdadeira guerra química, bacteriológica e radiológica”. Muito grave! Essa bravata irresponsável pode resultar em um isolamento ainda maior do Brasil. É uma estratégia vulgar para fazer uma cortina de fumaça e tapar os fatos da CPI. E, pela milésima vez, desdenhar da dor do brasileiro, ameaçar enfrentar o Judiciário e impor, por decreto, a proibição de medidas de restrição impostas pelo governadores. O mesmo show de horror, a mesma vulgaridade, a mesma leviandade.
Que a tristeza dessa morte de um ser iluminado, como era o grande humorista, nos dê esperança e força para renovar o enfrentamento do ambiente de guerra alimentado por esse presidente irresponsável. Em homenagem a um Brasil que já foi feliz, representado por essa figura carismática e envolvente, vamos apoiar a CPI, o impeachment, a tentativa de abrir um processo criminal no Supremo, o afastamento pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), enfim, vamos apoiar a vida, a alegria e a esperança. O Brasil só poderá ser feliz de novo quando a vacina e os cuidados impostos pela ciência tiverem vencido o vírus. E, para vencermos, é necessário derrotar o governo da morte, da falta de empatia, da empáfia que só os muito ignorantes conseguem ter.
Quem dedicou a vida a trazer luz, humor e muita alegria, fazendo dessa imagem leve a sua marca, a sua cara, que opere o milagre de, com sua morte, nos trazer também de volta a capacidade de indignação e de resistência. A falta de um rosto nas milhares de mortes diárias estava nos mantendo catatônicos.
A melhor maneira de homenagear aquele que se foi é enfrentando o que o levou. Os que cultuam a morte, que desprezam a dor e desconhecem a solidariedade podem ser vencidos com humor, poesia, literatura e responsabilidade no acatamento da ciência. Saudando meu velho e querido Leão de Formosa, no poema “Sonetilha Existencial”:
“O homem lúcido me espanta
Mas gosto dele na lírica
A verdade metafísica
Modela o verbo e a garganta.
O homem lúcido verifica
Que a existência não se estanca
Põe a babá ao pé da planta
Eis que a planta frutifica.
O homem lúcido como quer
Seja lá onde estiver
Ele está, sem aquarela.
Sabe que a vida é viscosa
Sabe que entre a náusea e a rosa
Foi que a ostra fez a pérola.”