Publicado na ConJur
Por Rodrigo Haidar
Há pouco mais de um mês, o juiz de instrução Ivo Rosa determinou o arquivamento de uma série de acusações de corrupção contra José Sócrates, político que ocupou o posto primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011. O juiz fez críticas ao material apresentado pelo Ministério Público no bojo da operação “marquês”, que afirmou ser inconsistente e baseado em especulações. A decisão, contudo, veio só depois de uma prisão por 11 meses e de sete anos de linchamento público em um processo conduzido de forma parcial pelo juiz Carlos Alexandre, uma espécie de Sergio Moro português.
O relato desse período em primeira pessoa está no livro Só Agora Começou, publicado no Brasil pela editora Contracorrente (clique aqui para ler a resenha). Hoje, o ex-premiê, julgado inocente, é quem acusa órgãos acusatórios e imprensa de, unidos, usarem a bandeira do combate à corrupção em benefício de pequenos interesses pessoais e para criar falsos heróis, corromper o devido processo legal e minar a liberdade das pessoas. “A câmera de televisão surge como novo instrumento da repressão estatal”, afirma.
Em entrevista por vídeo (clique aqui para assistir) concedida com exclusividade à ConJur, Sócrates ataca o que chama de aliança subterrânea entre membros do Ministério Público e jornalistas. “Eu dou-te a informação e tu dizes bem de mim. Isto é um comércio! Dessa aliança nasce um novo poder, mas que não é um poder explícito. É um poder oculto, um deep state”. Também pontua o destino comum de vários juízes que abandonaram a toga para se aventurar na política após conduzirem operações barulhentas: “Terminam sempre falando para as pedras do deserto”.
Leia os principais trechos da entrevista
ConJur — Seu livro revela uma miríade de semelhanças entre a operação “lava jato” e a operação “marquês”. Nos dois casos, é evidente o desprezo ao devido processo legal em nome do combate à corrupção. É possível criar mecanismos de controle eficientes para evitar que casos como esses se repitam?
José Sócrates — Sim e é fácil encontrá-los. Basta que a política não autorize os agentes da Justiça a cometer atropelos ao devido processo legal e às leis. Os casos da “lava jato” brasileira e da operação “marquês” portuguesa são muito semelhantes. Escrevi o livro três anos depois de ter sido preso. Demorei três anos porque não encontrava uma forma de contar a história que fosse suficientemente digna para ser considerada literatura. E ocorreu-me que talvez pudesse contar a história do que aconteceu comigo aqui em Portugal com os textos que eu fiz na altura da prisão, e uns textos mais contemporâneos, que escrevi em 2018. A dupla visão, a dupla voz. Corri, então, ao computador. Mas à medida que estava a escrever sobre o meu caso, estava tudo a acontecer no Brasil. Era impossível deixar de fazer a comparação. Portanto, ao mesmo tempo que contava a história da operação “marquês”, decidi contar os episódios que estavam a ocorrer naquele momento no Brasil. As semelhanças são enormes. Começamos pelo que vocês chamam de condução coercitiva. Aqui, chamamos detenção para interrogatório. Tudo começa aí! Essas operações começam sempre com o espetáculo da detenção.
ConJur — O processo penal se transformou em espetáculo?
Sócrates — As detenções para interrogatório são o início da brutalidade, da violência, e servem para apresentar como culpado aquele que querem perseguir. Esse espetáculo da detenção altera o princípio básico do Direito: a presunção da inocência. E transforma-a na presunção da culpabilidade. Achei muito interessante o debate no Brasil sobre a condução coercitiva. Porque a diferença entre Portugal e o Brasil é que, aqui, sobre esses abusos, essa vergonha, ninguém fala. Mas no Brasil fala-se e discute-se. Foi comovente ver que a condução coercitiva do presidente Lula levou a um debate de tal forma intenso que subiu ao Supremo Tribunal Federal. Lembro-me que comecei a prestar atenção ao ministro Gilmar Mendes, que acabou por considerar inconstitucional a condução coercitiva fora das razões previstas na lei — isto é, só pode haver condução coercitiva quando alguém de forma voluntária se recusar a apresentar-se ao juiz. Ele considerou essa condução coercitiva um abuso, inconstitucional. Aqui em Portugal continua a fazer-se isso. Temos uma lei que permite a prisão preventiva em casos de excepcional complexidade por até um ano sem qualquer acusação. Eu estive preso 11 meses sem qualquer acusação. Apresentaram uma acusação, a que vocês chamam de denúncia, três anos depois de me prender. E esses abusos foram transformados em uma técnica que consiste em utilizar a Justiça para perseguir fins políticos. Para perseguir o adversário político, o inimigo. Essa guerra travada em nome do combate à corrupção é o primeiro instrumento que corrompe as instituições. O que vocês viveram no Brasil é o mesmo que nós estamos a viver em Portugal, embora aqui não se discuta. No Brasil discute-se e vocês têm consciência de quanto a “lava jato” corrompeu as instituições brasileiras. Corrompeu-as no verdadeiro sentido, de criar metástases que foram se alastrando e alterando a dignidade, a credibilidade e a honorabilidade com que os cidadãos brasileiros olham para a sua Justiça.
ConJur — No final de 2019, foi sancionada a lei que criou o juiz das garantias no Brasil, que é como o juiz de instrução em Portugal. Acredita-se que isso possa frear desvios porque haverá um juiz para cuidar das garantias e outro para sentenciar. Mas no caso do senhor isso não adiantou, porque foi justamente o juiz de instrução que comandou a exploração midiática, o atropelo. O senhor acredita que a figura do juiz das garantias pode ajudar a evitar atropelos ao devido processo legal?
Sócrates — Pode. Mas a única forma de defender o processo legal, os direitos individuais e constitucionais é pela atenção de cada cidadão, pela desconfiança permanente que deve ter relativamente aos abusos do Estado. Porque isso acontecerá em qualquer sistema, tenha ou não juiz das garantias. Há uma grande semelhança entre Portugal e Brasil relativamente a um ponto: o problema que aconteceu no Brasil, a condução do processo pelo juiz de Curitiba, que veio a ser considerado incompetente, não foi por acaso, não foi um engano. Foi uma vigarice judicial, uma trapaça. Isto é, escolheram o foro de Curitiba porque queriam aquele juiz, o juiz certo, que iria permitir todas as arbitrariedades contra o presidente Lula. Por isso, não foi apenas uma formalidade. A diferença entre a operação “marquês” e a operação “lava jato” é que aqui não houve julgamento nenhum. Sete anos depois, eu ainda não fui a julgamento. Ainda estávamos na fase de decidir se há ou se não há julgamento. Sete anos depois! Aí já houve julgamentos, mas viciados, porque o Ministério Público escolheu o juiz. Foi o que aconteceu aí. E o mesmo aconteceu aqui.
ConJur — Como?
Sócrates — Em Portugal, temos uma regra para escolher o juiz, a regra mais democrática que existe: a do sorteio. Quando há muitos juízes — naquele tribunal, aliás, só havia dois —, mas tinha de ser feito um sorteio para que quando o processo chegasse para qualquer árbitro jurisdicional, teria que ser escolhido um deles. E a única regra que a lei prevê é o sorteio, uma escolha aleatória feita eletronicamente. O que fizeram no meu caso? Não fizeram o sorteio. Viciaram a escolha. Escolheram aquele juiz que queriam, que permitiu todas as barbaridades. O equivalente do Sergio Moro aqui em Portugal, que se chama Carlos Alexandre. Onde reside a legitimidade da Justiça? Por que nós obedecemos aos juízes? Por que aceitamos ser julgados pelos juízes? Porque são imparciais. Toda a legitimidade do juiz deriva dessa condição de estar acima das partes, de não ter partes, não ter favoritos, não ter nenhuma inclinação por um ou por outro. Essa independência do juiz é condição da legitimidade, não há Justiça sem isso. Um juiz que não seja imparcial deixa de ser juiz. É como árbitro de futebol: se é uma das duas equipes a escolher o árbitro, deixa de haver lisura e as pessoas deixam de acreditar, pela simples razão de que o jogo está viciado. O que aconteceu com a operação “marquês” e com a “lava jato” foi exatamente isso. Escolheram o juiz. Isto agora entrou em investigação. Uma das decisões foi extrair uma certidão e dizer ao Ministério Público: “Faz o favor e investigar quem foi o responsável por este vício”. Porque já foi decretado que a distribuição do meu processo foi viciada, ilegal. Mas agora tem que se investigar quem foi o responsável. É evidente que os principais suspeitos são o juiz e o procurador. Isto em qualquer país do mundo seria um escândalo. Não é em Portugal, porque, enfim, não há escândalos sem escandalizados.
ConJur — Como o senhor disse, o que faz com que respeitemos as decisões judiciais é a confiança de que o juiz é imparcial. Moro aceitou ocupar um lugar no governo Bolsonaro, candidato beneficiado pela condenação do ex-presidente Lula. Há no Brasil projetos de lei que criam um prazo de quarentena a ser cumprido para que juízes possam ocupar cargos políticos após deixar a magistratura. O que o senhor acha dessa ideia?
Sócrates — Absolutamente razoável e de bom senso impor essa quarentena. Porque nos últimos 50 anos vimos isso acontecer em vários países. Os meus amigos brasileiros estavam muito escandalizados e chocados quando esse juiz aceitou um cargo no governo Bolsonaro. E eu fartei-me de lhes dizer: “Isso é o princípio do fim”. Já vi esse filme aqui na Europa. Agora vai-se perceber duas coisas. Primeiro, a mediocridade do personagem. E mais: nesse momento ficou visível a sua parcialidade. Ele deveria ter vergonha de aceitar um cargo no governo para cuja eleição ele contribuiu. E não tendo vergonha, acha que tudo lhe é admissível. Não! Isso foi o princípio do fim dele e revelou o fingimento, o embuste e a mediocridade. No fundo, esse juiz nunca passou de um ativista político que usava a toga para obter e para construir uma biografia. E sabe como terminam esses personagens? Terminam sempre falando para as pedras do deserto. Veja como ele está e olhe para a Europa. Já vi isso acontecer, por exemplo, com Di Pietro, que era também um Moro da Itália na operação “mãos limpas”. E foi a esquerda que o instrumentalizou contra os políticos da direita. Ele, depois, candidatou-se pelos partidos da esquerda, formou até seu próprio partido e acabou envolvido em um escândalo por causa de umas casas. Enfim, desapareceu do mapa político. Porque, no fundo, ele não passava de um medíocre que nunca tinha feito carreira política, e toda a biografia que tinha construído era na função de juiz. A mesma coisa aconteceu com Baltazar Garzón, que era um juiz preferido da esquerda na Espanha. Sabe por que acabou expulso da judicatura? Porque mandou escutar advogados. Isto diz-lhe alguma coisa? Há outra juíza, que se chama Eva Joly, também justicialista, muito ligada às correntes mais progressistas dos Verdes europeus. Candidatou-se a presidente da República na França e teve 2% ou 3%. Desapareceu da vida política porque nunca tinha feito uma experiência e nem tinha a confiança das pessoas para se candidatar. Portanto, se acham que o uso do sistema judicial para potenciar carreiras políticas é uma novidade brasileira, não se iludam: não é uma originalidade brasileira. Aprenderam muito com os péssimos exemplos da Europa. E que nos Estados Unidos também aconteceram.
ConJur — Não é um fenômeno novo.
Sócrates — O fenômeno do lawfare é antigo. Muitas vezes a política recorreu ao sistema judicial para combater o adversário político. O problema é que esse combate passa a ser radical, conduz ao ódio e ao desrespeito pelo adversário. Um grande poeta francês, René Char, tem um aforismo muito bonito: “No fundo tudo isto se reduz ao seguinte: transformar velhos inimigos em leais adversários”. Toda a democracia é isto, ser leal adversário. E me custa ver tanta gente que eu considerava e que não foram leais adversários com Lula. Fico muito impressionado quando vejo políticos que eu me habituei a respeitar como sendo da direita democrática, como Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Geraldo Alckmin — gente que conheci ao longo da minha carreira política e considerava-os muito respeitáveis. Mas eles vêm agora dizer que no caso da “lava jato” se tratou de uma formalidade? Desculpem, o que aconteceu no Brasil foi um conluio entre o Ministério Público e o juiz para que o juiz fizesse tudo aquilo que o MP queria. O que aconteceu foi de uma violência brutal com o presidente Lula. E é inacreditável que os seus adversários políticos não tenham a dignidade de reclamar para ele, presidente Lula, aquilo que gostariam de ter para si próprios. Se alguma coisa lhes acontecer, querem um julgamento justo, por um juiz independente, imparcial, que não esteja afeito com nenhuma das partes.
ConJur — Quero ler um trecho do seu livro, que diz o seguinte: “Durante mais de 15 anos, o nosso sistema judicial conviveu com um tribunal especial criado especificamente para acompanhar os inquéritos judiciais de um único departamento de investigação penal e, pior, com um único juiz — o tribunal de um homem só. O trabalho continuado com a mesma equipa de procuradores, e durante tanto tempo, produziu o fenômeno da captura que a sociologia das organizações conhece bem. A investigação e o olhar crítico do juiz sobre ela — o duplo olhar que o sistema requer — há muito que foram postos de lado”. Em um julgamento no STF, o ministro Gilmar Mendes disse o seguinte: “É preciso acabar com a existência de juízos possuidores de arbitrárias e inconstitucionais supercompetências ligadas a grandes operações da Polícia Federal e do MPF. Isso já causou muitos males ao Brasil. A partir dessa modelagem de varas com supercompetências começam a florescer ambientes de corrupção nos locais que deveriam ser locus de combate à corrupção”. Parece que ele leu seu livro. Mas revela que, como o senhor disse, esse filme já é conhecido.
Sócrates — Portugal cometeu um erro gravíssimo ao criar um tribunal para um departamento de investigação dos mais sensíveis no Ministério Público. E, pior do que isso, ao dotar este tribunal de um único juiz, que durante 15 anos esteve neste lugar — foi, aliás, o juiz instrumentalizado e a quem foi entregue o meu processo, de forma viciada. Todas as pessoas que trabalham em uma organização sabem o suficiente da vida para saber que, se um juiz trabalha durante 15 anos com um departamento de investigação, com os mesmos procuradores, acabará capturado. Este juiz do inquérito, nós chamamos de juiz das garantias, a única coisa que o juiz tem que fazer é observar o que está a fazer o Ministério Público e garantir que os direitos fundamentais não são violados. O que acontece é que esse juiz, em vez de verificar se os direitos das pessoas são preservados, se transformou em um outro superprocurador. E há as vaidades. Aqui em Portugal, esse juiz é considerado por toda a imprensa como superjuiz. Exatamente o que se passou no Brasil com a construção do mito do superjuiz Sergio Moro, tal como aqui o mito do superjuiz Carlos Alexandre. Eu comecei a reparar no ministro Gilmar Mendes quando ele tomou aquela decisão de considerar a condução coercitiva inconstitucional. Ele percebeu que tudo começa ali, com a condução coercitiva. E tenho admirado o percurso de grande coragem no enfrentamento das arbitrariedades da “lava jato” e, se me permite, eu gostaria de contar um episódio.
ConJur — Claro, por favor.
Sócrates — Foi o episódio da morte do neto do presidente Lula. O presidente foi ao funeral do neto. Foi um dia, imagino, de especial sofrimento. Ver morrer um neto, ter que enterrar um neto, é uma das coisas mais horríveis que nós podemos conceber — apesar de ter visto, no Brasil, piadas de mau gosto quanto a isso. Mas houve um pormenor que me chamou a atenção. Eu vi em uma reportagem que, no momento em que o presidente Lula estava no funeral, alguém lhe passou o telefone dizendo que era o ministro Gilmar Mendes, que ligou para o telefone de um amigo e pediu para que passassem ao Lula. Ao telefone, Gilmar disse: “Olha, quero lhe dar um abraço e dizer que eu e minha esposa estamos comovidos com o que aconteceu, e queria que soubesse que apresentamos os nossos sentimentos…” Para lhe dar uma palavra de coragem. E conta o relato do jornal que o presidente Lula reagiu a isso começando a chorar. Não conseguia dizer nada, entregou o telemóvel ao amigo e o amigo ia despedir-se do Gilmar e reparou que o Gilmar estava a chorar compulsivamente também. Nesse momento, eu escrevi um artigo e disse: “Neste choro há mais do que simples humanidade pessoal, é um choro que também tem uma dimensão política”. Porque aqueles dois personagens são de campos políticos diversos. Lula e Gilmar pensam de formas diferentes, mas são leais adversários, gostam da democracia e, naquele momento, em que os dois choravam, eu senti que ambos choravam por um mundo que tinha deixado de existir. Um mundo em que se competia com lealdade, com regras claras. Um mundo em que um lado e outro davam o melhor para ganhar eleições, para convencer as pessoas, para atrair as pessoas, para fazer melhores propostas, para convencer que, se escolhessem a ele, o Brasil iria para um caminho melhor. Esse tempo, naquela altura, parecia ter acabado. Eu senti que aquele choro do Gilmar Mendes com o do Lula era um choro por um Brasil que estava a acabar. Mas não acabou. Ao fim destes anos sentimos que o Brasil está a recuperar. Confio que o Brasil saberá encontrar o seu caminho de regresso à democracia, à competição justa e leal entre os adversários políticos. Tudo está aí, como dizia René Char: “Transformar velhos inimigos em leais adversários”. Isto é a democracia.
ConJur — Como o senhor vê o alinhamento da imprensa com as teses de órgãos acusatórios?
Sócrates — O jornalismo tem que fiscalizar todos os poderes e ser contra todos os abusos, e não seguir, acriticamente, os abusos das instituições judiciais, porque o que está a acontecer no nosso mundo democrático é uma aliança subterrânea, escondida, entre os organismos das procuradorias, de investigação, e os jornalistas. E baseada em uma troca de favores: um lado dá a informação, o outro lado faz elogios — eu dou-te a informação e tu dizes bem de mim. Isto é um comércio. Dessa aliança, nasce um novo poder. Mas um poder do submundo. Não é um poder explícito, não é um poder que se apresenta. É um poder oculto, é um deep state.
ConJur — Em um trecho do livro o senhor diz o seguinte: “O método é seguro e tem mostrado resultados — se os metermos todos na prisão, alguém acabará por denunciar alguém”. Isso me lembrou a colaboração premiada no Brasil, que se transformou no principal método de investigação do Ministério Público. Isso ficou claro nas conversas que vazaram entre procuradores, e entre procurador e juiz, publicadas pelo site The Intercept. É um método: “Prende até forçar uma delação, ele vai contar e a gente não precisa mais investigar”. O que o senhor acha disso? E como isso funciona em Portugal?
Sócrates — Reajo muito mal à ideia da delação premiada. Mas nos países em que não há a delação, sabe qual o método? Aqui em Portugal metem as pessoas na prisão durante seis meses, um ano, sem os acusarem. E só os libertam quando o procurador quiser e quando achar que destruiu moralmente o acusado. No meu caso foi assim. Prenderam toda a gente, mas tiveram o azar dos Távoras. Os Távoras eram uma família que se opôs ao Marquês de Pombal e foram todos mortos por ele. Por isso, temos essa expressão divertida: “o azar dos Távoras”. Isto é, o azar dos Távoras deles foi que todos aqueles que prenderam não tinham mais nada a não ser dizer a verdade, que nada daquilo que eles pensavam existia. Eu estive 11 meses preso sem culpa formada. Não há julgamento! Passaram sete anos sem julgamento, com uma denúncia apresentada três anos depois. Veja o escândalo disto!
ConJur — O Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional) e a União Europeia têm recomendado leis cada vez mais duras contra lavagem de dinheiro. Por um lado, é importante combater crimes. Por outro, há um endurecimento cada vez maior da legislação penal e esses desvios de autoridades sobre os quais falamos aqui. O senhor considera legítima essa pressão?
Sócrates — Não, não! Tirem-me desse filme! O que aconteceu no mundo desenvolvido nestes últimos 20 anos? O momento crítico foi o do atentado terrorista em 2001. A partir daí, por pressão dos Estados Unidos, todos os sistemas democráticos decidiram dar mais poder às autoridades penais, às autoridades estatais, e reduzir a liberdade individual. Acho isso tudo horrível. Os exageros que se fizeram em nome da luta contra o terrorismo, depois em nome da luta contra a corrupção e, agora, a vigilância que o Estado faz sobre cada uma das pessoas. Tudo isso está a destruir aquela noção básica da autonomia do indivíduo, da liberdade individual. Não quero que o Estado se meta onde não deve. A batalha dos Estados democráticos deve ser por valorizar e dar mais autonomia ao indivíduo. Não por menos autonomia e mais poderes ao procurador, à polícia, aos juízes, para perseguir e penalizar as condutas sociais. E ainda por cima de formas ambíguas, que não se sabe exatamente o que eu posso e o que eu não posso fazer. O Partido Socialista, em Portugal, formou-se na defesa da liberdade. Em 1974, tivemos a nossa revolução. Em 1975, estivemos, não direi à beira de uma guerra civil, mas houve uma disputa muito forte entre o Partido Socialista e o Partido Comunista. E nosso líder histórico, Mário Soares, mobilizou o país contra o excesso que o Partido Comunista queria trazer para a revolução. Esta batalha pela liberdade marcou profundamente o Partido Socialista, marcou-me a mim. Eu sou daqueles socialistas para quem o valor fundamental é a liberdade individual. Só a seguir vem a questão de igualdade, porque não haverá igualdade nenhuma sem liberdade. O socialismo só existe com liberdade ou não haverá socialismo. Essa é uma lição que a esquerda aprendeu na Europa há mais de cem anos. Mário Soares costumava responder assim: “Então, você é socialista?”. “Sim, sim, mas antes sou um democrata.” É uma resposta histórica que os brasileiros deviam ter presente, porque neste momento, em que se vive o que se vive no Brasil, a prioridade não é se é direita ou se é esquerda. Mas, sim, se é democrata ou não é democrata.