DE LISBOA
Ivone é uma cantora de fado de 78 anos. Ela trabalha na Esquina do Fado, em Alfama, Lisboa.
É bom vê-la. Ivone vibra ao cantar. Dança, convida a platéia a fazer coro. É uma mulher feliz com seu trabalho, naturalmente. É ainda bonita, magra, os cabelos curtos bem arrumados.
Cumprimento-a no intervalo.
Jamais vou a Lisboa sem passar em Alfama e ouvir fado. Ela me diz que só começou a cantar depois de enviuvar. O marido não a deixava cantar. Ela tinha 59 anos quando se tornou ao mesmo tempo viúva e cantora.
“Graças a Deus ele morreu”, brinco. Ela ri, e concorda elegantemente. Mais tarde, repete meu comentário para a dona da casa de fado. As duas parecem se divertir — uma coisa não muito comum nestes dias em que Portugal enfrenta uma tenebrosa crise econômica.
E então penso o seguinte.
Poucas coisas são tão melancólicas quanto um casamento em que o sobrevivente fica feliz com a morte do outro, como um escravo que enfim se liberta.
Vi, ao longo de minhas vida, vários casos parecidos com a de Ivone, a cantora tardia e feliz de Alfama.
Qualquer relação só faz sentido quando um eleva o outro e, ao partir, deixa um vazio. Fiquei tocado, recentemente, com uma mensagem que recebi de meu professor Guzzo, há pouco tempo. Ele me dizia que não havia um dia só em que não pensava na “companheirinha” – Leni, sua mulher, sua amiga, seu amparo e seu tudo, morta há dez meses, para infinita dor de Guzzo.
Mas histórias assim, infelizmente, são exceção.
Mais comuns são casos como o da cantora de Alfama, que teve que esperar pacientemente que o marido morresse para soltar a voz, para alegria de ouvintes como eu.
O filósofo britânico David Hume tinha a tese de que, como tudo na vida, o casamento deveria ser visto como um contrato passível de mudanças. As duas partes, de tempos em tempos, deveriam rever os termos do acordo e verificar, com calma e cálculo, se desejam seguir juntos.
Se a tese de Hume tivesse triunfado, Ivone teria se realizado muito antes – e muitas escravidões conjugais seriam abreviadas.