Por Aldo Fornazieri
As manifestações de 29 de maio expressaram a vitória da indignação, da militância e dos ativistas sociais. Indignação que estava contida, reprimida, aprisionada, deprimida, sufocada e comprimida. Não era mais possível aceitar que as ruas fossem ocupadas apenas por defensores de um governo que leva o povo brasileiro para o matadouro. Não era mais possível não se manifestar contra o governo do genocídio, da mentira sistemática, do desemprego, do descaso e do escárnio. Não era mais possível calar contra um governo da indiferença perante a morte de milhares de pessoas, da zombaria para com dor dos familiares e amigos que perderam entes queridos e do vilipêndio para com os mortos.
Não era mais possível que o povo brasileiro não saísse às ruas vendo o povo da Colômbia se erguer em rebelião contra um governo opressor, vendo o povo do Chile arrancar uma Assembleia Constituinte para pôr fim à Constituição de Pinochet, vendo o povo da Bolívia derrotar o golpe e vendo o povo do Paraguai se mobilizar contra um governo que lhe negou vacina e proteção. No ano passado, este nosso povo viu milhões de norte-americanos tomarem as ruas das cidades para protestar contra o brutal assassinato de George Floyd. A indignação represada estava explodindo no peito e no coração dos brasileiros – principalmente no peito e no coração da juventude e das mulheres. Os sinais dessa indignação já ardiam em 2020 quando jovens chamaram atos em defesa da democracia que foram boicotados por setores de partidos de esquerda.
O que os jovens, as mulheres e o povo não tinham eram líderes corajosos – com exceção de alguns poucos – que os conduzissem para o único caminho capaz de derrotar este governo genocida: o caminho das ruas, o caminho dos protestos, o caminho das mobilizações. Os líderes políticos e sociais ainda estão em dívida para com este povo indignado.
Por isto, as mobilizações do dia 29 foram uma vitória da militância e dos ativistas sociais. A pressão que veio das bases conseguiu desentocar os líderes partidários e sindicais do conforto de seus lares, da insipidez de suas lives, da impotência de suas estantes de livros. Esses líderes não foram capazes de perceber que o isolamento social só existe para as classes médias para cima. O povo pobre das periferias ficou abandonado, desempregado. Nem todos os necessitados conseguiram o auxílio emergencial miserável do governo.
Não por acaso, estudo da USP comprova que enquanto os bairros mais pobres da cidade de São Paulo registraram 60 ou mais mortes por Covid-19 para cada 10 mil habitantes, os bairros de classe média e média alta registraram de 10 a 20 mortes para cada 10 mil habitantes. Em contrapartida, as regiões mais ricas imunizaram, até final de abril, 12,5% de seus habitantes, enquanto as regiões mais pobres imunizaram \apenas de 5% a 7,5% de seus moradores. Tal como ocorre no mundo, aqui dentro do Brasil existe um brutal apartheid da vacina, que sacrifica os pobres. Não se pode aceitar esta injusta situação criminosa na base das lives que sequer denunciam esta brutalidade.
As direções partidárias precisam abandonar esses equívocos. A vida política do país não pode ser reduzida ao calendário eleitoral. É preciso perceber que antes de 2022 existe 2021. É preciso perceber que a centralidade da luta do povo é para sobreviver à pandemia, à fome e ao desemprego. É preciso perceber que a inflação dos alimentos está tirando comida da mesa dos brasileiros.
É preciso perceber, acima de tudo, que não se pode esperar 2022 para derrotar Bolsonaro e seu governo da morte. A manutenção de Bolsonaro na presidência significa mais mortes, mais desemprego, mais fome, mas desmatamento e destruição do meio ambiente, mais destruição do Brasil e desmoralização do país no mundo. Os partidos precisam colocar o calendário eleitoral num segundo plano para colocar o calendário das lutas no primeiro plano.
Por outro lado, não se pode cair no ufanismo de que as manifestações do dia 29 de maio já são suficientes para provocar o impeachment. O impeachment só virá se as manifestações continuarem e forem muito mais amplas e vigorosas do que foram. Pesquisa Datafolha mostra que 49% da população quer o impeachment contra 46%.
O mesmo instituto mostrou que à véspera (16/04/2026) do impeachment-golpe contra Dilma, 61% da população apoiavam o seu afastamento e 33% eram contrária. Apenas 13% consideravam o governo bom e ótimo. Na pesquisa Datafolha de maio, Bolsonaro teve 24% de bom e ótimo. Desta forma, para que o impeachment realmente ocorra é preciso uma intensa pressão da sociedade sobre a Câmara dos Deputados e seu presidente.
Há ainda um longo trecho a percorrer, uma gigantesca batalha de persuasão e convencimento a ser travada. O cenário principal dessa batalha não está na internet, mas nas ruas. O sentimento antibolsonarista hoje é majoritário na sociedade. Mas é preciso desequilibra-lo ainda mais contra o presidente e seu governo. Este desequilíbrio só poderá vir das ruas. Se isto não ocorrer, amanhã ou depois Bolsonaro poderá se recuperar com o apoio das elites antipovo e dos oportunistas que pululam na política brasileira e no mercado financeiro. É preciso lembrar que vários setores da sociedade deram mostras cabais de que não têm apreço pela democracia.
É preciso considerar ainda que para provocar o impeachment de Bolsonaro o esforço que os democratas precisam fazer terá que ser adicional. Ele conta com apoio de importantes setores das elites predatórias, de setores militares golpistas principalmente nas polícias, de milícias, de criminosos grileiros e destruidores do meio ambiente, do agronegócio.
Quanto mais isolado Bolsonaro se vê, mais ele aposta na divisão das Forças Armadas. A demissão dos três comandantes militares e a troca do ministro da Defesa teve esse objetivo. É o mesmo objetivo quando tenta impedir a punição do general Pazuello. Ele aposta na anarquia e na indisciplina militar para pescar nas águas turvas de um golpe.
Os líderes partidários, sindicais, dos movimentos populares e de outras instituições precisam estruturar a resistência contra Bolsonaro em diferentes frentes: nas ruas; nas instituições, como Congresso e STF; na CPI e na sociedade civil. A remoção de Bolsonaro é uma demanda da dignidade humana, é uma petição civilizatória. O povo brasileiro não pode mais viver com este continuado horror encarnado por este governo.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (Fespsp).