De militarismo e quarteladas o Estadão entende. É PhD no assunto. Esteve por trás de todos os golpes de Estado do país desde sua fundação, no final do século retrasado.
Então, quando chama Bolsonaro de miliciano em seu editorial convém ficar atento que pode ter coisa boa nesse mingau.
Leia o editorial desta quinta, 3.
O presidente Jair Bolsonaro nomeou o general intendente Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, para a Secretaria de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Com esse gesto, o presidente premiou um oficial militar indisciplinado, que desprezou publicamente o espírito da farda que veste. As consequências desse gesto são nefastas – e potencialmente perigosas.
A nomeação não causa surpresa. O intendente Pazuello vem demonstrando há muito tempo ter a principal – talvez única – qualidade exigida por Bolsonaro em sua administração: lealdade canina ao chefe. Na CPI da Pandemia, o ex-ministro da Saúde agrediu a inteligência alheia de maneira constrangedora para defender Bolsonaro, o principal responsável pelas enormes dificuldades que o Brasil enfrenta no combate à pandemia de covid-19.
Não bastasse isso, o intendente foi a um comício do presidente Bolsonaro, em óbvia afronta ao regulamento das Forças Armadas e à Constituição, que proíbem a atividade político-partidária aos militares da ativa, caso do general Pazuello. Para adicionar insulto à injúria, o oficial, para tentar evitar punição, justificou-se diante do Comando do Exército com a patranha de que a manifestação bolsonarista não era “política”, e sim apenas um singelo “passeio de moto”.
Desse modo, Pazuello seguiu à risca o manual bolsonarista de desfaçatez: depois de ter franqueado o Ministério da Saúde ao charlatanismo, o general fez troça da disciplina e da hierarquia militares, testando os limites institucionais – exatamente como Bolsonaro faz desde que foi um mau militar.
Para os celerados bolsonaristas, o desrespeito às instituições é sinal de valentia – essa gente considera que os pilares do regime democrático estão apodrecidos pela corrupção generalizada e pela ideologia comunista e por isso devem ser demolidos. Melhor ainda se esse combate for travado por meio de cinismo, como mostrou a indecente defesa apresentada pelo intendente Pazuello ao Exército.
Essa aventura irresponsável está conduzindo o País para um terreno minado. Bolsonaro entregou a um general insubordinado um cargo que tem entre suas atribuições elaborar análises “para o planejamento de ações governamentais com vistas à defesa da soberania e das instituições nacionais e à salvaguarda dos interesses do Estado”, conforme o Decreto 10.374. Além da óbvia afronta de Bolsonaro às Forças Armadas, que credibilidade terão os estudos em áreas tão sensíveis produzidos por um secretário que vê de maneira tão equivocada os interesses do Estado e valoriza tão descaradamente os interesses próprios e de Bolsonaro?
Na caquistocracia bolsonarista, contudo, isso é irrelevante. Com a nomeação do indisciplinado e incompetente Pazuello, Bolsonaro confirma a profunda mediocridade de seu governo. Mais grave, contudo, é que o presidente consagra como princípios a insubordinação e a quebra da hierarquia militar, exatamente à sua imagem e semelhança. Convém lembrar que no mais recente momento da história nacional em que isso aconteceu, o presidente da República que estimulou a indisciplina militar foi afastado pelas Forças Armadas.
Engolfado pela pandemia e pela perda de quase meio milhão de brasileiros, o Brasil não precisa de desordem militar. O País está pacificado desde 1985, com a culminação do processo de transição do regime militar para a democracia. Desde aquele momento, os militares retiraram-se da cena política. Não há hoje nenhuma questão ideológica que justifique essa tensão que Bolsonaro provoca nos quartéis e no País.
Na verdade, o presidente Bolsonaro parece interessado em submeter as Forças Armadas a seus propósitos autoritários, mas as Forças Armadas certamente não se têm deixado submeter a interesses mesquinhos nem deixarão que se instaure em suas fileiras a desobediência sistemática. Se o fizessem permitiriam que se instalasse na tropa uma ruptura institucional que, depois de tantas lutas pela restauração da democracia, seria inadmissível diante dos brasileiros e diante do mundo.
Bolsonaro, em resumo, nomeou o intendente Pazuello pensando escarnecer dos militares. Mas o escarnecido é o País e, antes dele, um comandante em chefe que se comporta como chefe de milícia.