Publicado originalmente no site do Brasil de Fato
POR DANIEL GIOVANAZ
O mineiro Rodrigo Leonardo Silva Ferreira foi o primeiro motorista brasileiro a ter vínculo empregatício com a multinacional estadunidense Uber reconhecido por um juiz, em 2017. A sentença foi revertida em instâncias superiores, mas a luta por direitos não terminou.
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Cofundador da Associação dos Prestadores de Serviço que Utilizam Plataformas Web e Aplicativos de Economia Compartilhada (Appec), ele planeja articular uma ação coletiva contra a empresa, alegando dumping social.
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Em entrevista ao Brasil de Fato, o trabalhador relembra sua trajetória, cita os estragos financeiros e emocionais causados pela Uber e deixa claro que continuará na Justiça até que haja reparação dos danos.
Entusiasmo e decepção
Ferreira trabalhava há 15 anos no ramo de transporte executivo quando a multinacional chegou ao Brasil, às vésperas da Copa do Mundo de 2014. À época, ele fazia o trajeto entre a cidade de Governador Valadares (MG) e o Aeroporto Internacional de Confins, em Belo Horizonte (MG).
O país vivia um ciclo de otimismo – antes do 7 a 1 e da crise econômica –, e a Uber prometia facilitar a dinâmica de trabalho dos motoristas.
O contato intermediado com os passageiros e a flexibilidade na forma de pagamento atraíram Ferreira e milhares de profissionais do transporte para o aplicativo.
O slogan da empresa, “Seja seu próprio chefe”, traduz a expectativa depositada pelos motoristas: trabalhar sem jornada fixa, no horário que preferir, conforme a necessidade.
“Eu era um dos maiores entusiastas da Uber em Belo Horizonte. Acreditava que era o emprego dos sonhos”, lembra.
Ferreira não apenas se cadastrou na plataforma, como abandonou os clientes que tinha como motorista particular e incentivou colegas a fazerem o mesmo.
“Eu era uma espécie de garoto-propaganda da Uber. Em matérias, entrevistas, reportagens sobre os aplicativos, eu estava lá dando a minha cara”, diz.
“Eles marcavam de eu ir encontrar com o jornalista que fosse fazer entrevista, tirar foto com fotógrafo, para poder publicar nos jornais aqui de Belo Horizonte.”
Naquele momento, taxistas haviam declarado “guerra” aos motoristas da Uber em várias capitais, e Ferreira sentia falta de respaldo e proteção da empresa nesse fogo cruzado.
“Na época, a gente tinha contato direto com os administradores da Uber aqui em Belo Horizonte. E eu ia lá dar a cara para falar, dizer que eles tinham que dar um amparo ao motorista”, relata.
Sem respostas por parte da multinacional, Ferreira entendeu que caberia aos próprios motoristas se organizarem.
Foi quando, depois de um ano de trabalho com a Uber, ele liderou a criação da Appec. Foi a terceira associação do país – e a primeira de Minas Gerais – com esse objetivo.
“Quando a Uber ficou sabendo que eu tinha criado essa associação, imediatamente eles cortaram a minha conta. Fizeram um bloqueio definitivo”, conta Ferreira.
Durante três semanas, o motorista insistiu para que a empresa respondesse seus e-mails e telefonemas.
“Até que um dia resolveram me receber lá [no escritório da empresa]. Perguntei qual era o motivo da minha exclusão, e eles disseram que só aparecia no sistema que eu tinha sido bloqueado permanentemente”, lembra.
“Implorei a eles para voltar à plataforma, porque era o meu único ganha-pão e não existiam outros aplicativos. Como eu já tinha aberto mão do meu serviço anterior, não conseguia voltar mais, porque alguém já tinha preenchido a minha vaga. Fiquei de pés e mãos atados.”
Decisão inédita
Sem respostas por parte da Uber, a quem sempre encarou como empregador, Ferreira decidiu entrar na Justiça. Além de questionar as razões de sua exclusão do aplicativo, o motorista pediu o reconhecimento do vínculo de emprego.
Ferreira não foi o primeiro a fazer isso. Antes dele, Wagner Martins de Oliveira, também de Belo Horizonte, havia ajuizado um processo semelhante na 44ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, mas não teve ganho de causa.
Embora reconheça que “tudo é velado e maquiado”, Ferreira enfatiza que a relação entre os motoristas de aplicativo e a empresa dos EUA cumpre os requisitos previstos nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
O primeiro requisito é a não eventualidade, ou seja, o contrato gera uma continuidade na prestação de serviço, mantendo uma regularidade no desenvolvimento da atividade em benefício do empregador.
O segundo é a subordinação, que se caracteriza pela submissão do trabalhador às diretrizes do empregador, o qual determina o lugar, a forma, o modo e o momento da execução da atividade.
Esse é um dos conceitos que gera mais debate, originando decisões judiciais divergentes em várias partes do mundo.
A lista também inclui a onerosidade – basicamente, remuneração em troca de serviços prestados – e a pessoalidade, que pressupõe que o empregado é pessoa física e não pode ser substituído.
Completa a lista o requisito da alteridade, que é o empregador assumir os riscos decorrentes do seu negócio, sem repassá-los ao empregado.
O processo aberto por Ferreira correu na 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte e teve um resultado inédito, em 13 de fevereiro de 2017.
Conforme a decisão de primeira instância, proferida pelo juiz Márcio Toledo Gonçalves, o Uber deveria pagar aviso prévio indenizado, férias proporcionais, valores correspondentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), com multa correspondente a 40% pela demissão.
Os valores foram calculados sobre o período trabalhado – entre fevereiro e dezembro de 2015.
Além dos adicionais noturnos, das horas extras e dos feriados, a Uber foi condenada a pagar um reembolso de R$ 2,1 mil por todo o contrato de trabalho – correspondente às despesas do motorista com combustível, balas e água oferecidas aos passageiros.
Somando todas as obrigações, a Uber deveria pagar cerca de R$ 80 mil a Ferreira – que, no início da ação, pedia R$ 130 mil. Na sentença, o magistrado citou os riscos da chamada “uberização”.
“Muito embora ainda se encontre em nichos específicos do mercado, tem potencial de se generalizar para todos os setores da atividade econômica”, escreveu Gonçalves.
“A ré destes autos [Uber] empresta seu nome ao fenômeno por se tratar do arquétipo desse atual modelo, firmado na tentativa de autonomização dos contratos de trabalho e na utilização de inovações disruptivas nas formas de produção.”
A disputa judicial foi acirrada e teve até condenação por crime de falso testemunho. Ferreira conseguiu provar que um dos motoristas que testemunhou em defesa da Uber mentiu em seu depoimento.
“Eu fui o cara mais traído pela Uber em Belo Horizonte. Fui mais prejudicado do que você possa imaginar”, relembra.
Nova frustração
Além de determinar o pagamento ao motorista, a decisão da 33ª Vara do Trabalho poderia contribuir na construção de uma jurisprudência favorável aos trabalhadores de plataformas digitais no Brasil.
No fim das contas, nada disso aconteceu.
O motorista mineiro nunca recebeu um centavo da empresa após a sentença de fevereiro 2017. A Uber recorreu daquela decisão e teve ganho de causa no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 3ª Região.
O texto da relatora, desembargadora Maria Stela Álvares da Silva Campos, foi publicado em maio do mesmo ano. Ela acolheu os argumentos da Uber e concluiu que inexistiam os requisitos para reconhecimento do vínculo de emprego.
Sobre a ausência de pessoalidade, por exemplo, a magistrada escreveu que “o motorista cadastrado no Uber pode, para o mesmo veículo, cadastrar outro motorista, recebendo o primeiro em sua conta os valores dos dois.”
Em relação à subordinação, a Uber afirmou que Ferreira nunca foi seu empregado, mas “parceiro comercial, trabalhando de forma autônoma, com absoluta independência e autonomia no uso do aplicativo, podendo recusar passageiros e ligar ou desligar o app como lhe aprouvesse, decidindo quando, como e a forma de utilização da plataforma.”
O motorista citou uma série de orientações feitas pela Uber na relação com o passageiro, que podiam inclusive resultar em sanções ao trabalhador.
Esse argumento também foi desconsiderado pelo TRT.
“Existe subordinação do empregado ao empregador quando evidenciado o poder de direção e comando deste último em relação ao primeiro, interferência efetiva no modo de desempenho de atividade e de tempo a ela dedicado, o que se comprovou não ter havido entre as partes. A subordinação não se revela apenas por orientações dadas diretamente ao motorista ou pela internet”, escreveu a relatora.
Ferreira recorreu dessa decisão, e o processo chegou ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) em Brasília, que referendou a decisão do TRT.
“Na segunda instância, eles sustentaram que a minha relação com a Uber era de sócio, e não de trabalhador. Não sabemos o que aconteceu por trás das câmeras, mas o recurso não foi aceito”, diz.
Próximos passos
Depois de trabalhar para o aplicativo Cabify, concorrente da Uber, Ferreira atua hoje como Microempreendedor Individual (MEI), fazendo entregas do site Mercado Livre em Belo Horizonte.
Ele afirma que nunca se recuperou do impacto da chegada dos aplicativos de transporte individual à cidade.
“Para se ter uma ideia de como a minha relação com a Uber era visceral, eu saí do parto do meu filho para participar de uma reunião com a empresa. Recebi as fotos do meu filho nascendo dentro da sala de reunião da Uber, até chorei de emoção na hora”, relembra.
Ferreira tem ainda um processo em aberto contra a multinacional estadunidense. A pandemia atrasou as audiências, mas ele espera ainda este ano um retorno positivo.
“Como a Uber alega que a relação não é de empregado e empregador, então nós seríamos contratantes e eles, contratados. Mas, olhando por esse prisma, ela não teria direito de rescindir meu contrato se eu não descumpri uma vírgula do que foi combinado. E foi o que ela fez comigo”, explica.
O setor de transporte individual executivo, ao qual ele se dedicou por 15 anos, teria sido destruído pela entrada dos aplicativos.
“A Uber faz igual a um traficante: alicia o motorista com incentivo, com dinheiro, e quando você já está tomado por isso, já era. Não existe mais o seu mercado”, lamenta Ferreira.
O motorista diz que estava claro desde o início que a relação com a empresa “não era um mar de rosas”, mas não esperava que os prejuízos fossem tão grandes.
“Não imaginei que seria de forma tão violenta. A pessoa constrói a sua vida dependendo de uma determinada profissão, e de repente essa profissão é extinta? Eu mesmo tive muitos danos psicológicos e emocionais em relação ao que a Uber fez comigo”, relata.
Com cerca de 250 associados, a Appec continua funcionando. Até o fim do ano, haverá a eleição de uma nova diretoria.
“Se tudo der certo, depois dessa eleição vamos entrar com uma ação coletiva de dumping social, que é quando a expectativa do contratante é frustrada pela empresa”, afirma Ferreira.
O dumping social se caracteriza pelo descumprimento de normas trabalhistas como estratégia, por parte do empregador, para reduzir custos de produção e maximizar seus lucros, gerando danos à sociedade.
O valor a ser pago pela empresa, em caso de condenação, não é previamente definido e depende de cada situação.
São raros os juízes que admitem que um trabalhador peça uma indenização por dano social, por meio de uma ação individual. Por isso, Ferreira busca aprovar, por meio da Appec, a abertura da ação coletiva.
“Quando a Uber entra, ela alicia o motorista e compra o mercado dele por ninharia. Então, hoje não existe mais a profissão de motorista [fora dos aplicativos], não tem mais mercado interno para explorar”, analisa.
“A Uber e os seus concorrentes disputam mercado e esmagam a condição do motorista poder negociar e dar preço a suas corridas.”
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com a Uber e apresentou as críticas e acusações feitas pelo motorista Rodrigo Leonardo Silva Ferreira.
A empresa respondeu por meio de nota e defendeu a inexistência de vínculo com os motoristas cadastrados no aplicativo.
Confira na íntegra:
“Os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber, eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação de viagens oferecida pela empresa por meio do aplicativo. Dessa forma, não há subordinação na relação, pois a Uber não exerce controle sobre os motoristas, que escolhem quando e como usar a tecnologia da empresa.
Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe controle ou determinação de cumprimento de jornada mínima.
Nos últimos anos, os tribunais brasileiros vêm construindo sólida jurisprudência confirmando o fato de não haver relação de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros, apontando a inexistência de onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação, requisitos que configurariam vínculo empregatício. Em todo o país, já são mais de 900 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho neste sentido, além de julgamentos no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e quatro decisões no TST (Tribunal Superior do Trabalho).”