A revista francesa L’Express revela nesta semana que o laboratório dirigido por Didier Raoult, o defensor da cloroquina para tratamento de Covid-19, virou um foco de contaminação do coronavírus.
Segundo a reportagem, um dos membros do instituto precisou ser reanimado, depois de ter usado a hidroxicloroquina. A publicação aponta que reuniões sem máscara continuaram enquanto o vírus se propagava no Institut Hospitalier Universitaire Méditerranée Infection Marseille (IHU), dirigido por Didier Raoult.
A publicação aponta que o médico desaconselhou a vacinação de um paciente internado e tratado à base de hidroxicloroquina e que Raoult viajou para o Senegal depois de ter sido informado de que esteve em contato com pessoas contaminadas pelo coronavírus.
Estado grave
“Um técnico foi para a reanimação. Ele sobreviveu, felizmente. Um médico foi hospitalizado. O caso foi abafado internamente, ao ponto que seminários e reuniões semanais, nos quais o uso de máscara e o distanciamento social são pouco respeitados, foram mantidos”, relata.
“Confusos mediante esse comportamento de desprezo das regras sanitárias mais elementares e sobretudo exasperados pelo discurso anticiência promovido há meses pelo professor Raoult e seu grupo, diversas pessoas que trabalham no IHU, no hospital de Timone ou em contato direto com esses estabelecimentos decidiram contar o que sabem à revista L’Express”, afirma.
“Todos estão indignados com a passividade dos Hôpitaux universitaires de Marseille em relação ao diretor do IHU, mas também com o clima de medo que reina no IHU e na AP-HM (Assistance Publique Hôpitaux de Marseille, rede da qual depende o laboratório do professor Raoult). Essas diversas testemunhas, cujas identidades foram confirmadas por L’Express, solicitaram o anonimato para evitar represálias que eles estimam ser inevitáveis”, conta.
Como o DCM apontou, a atmosfera de medo e assédio no laboratório sob a direção de Didier Raoult já havia sido revelada em reportagem do canal de televisão francês M6.
“Houve pelo menos seis contaminações no nosso estabelecimento, onde um técnico foi para reanimação no hospital de la Timone – que fica em frente ao nosso laboratório – e um médico infectologista que foi hospitalizado no IHU”, revelou uma das fontes que trabalha no Institut Hospitalo-Universitaire de Raoult.
“Dois membros do hospital de la Timone confirmam esse relato”, diz a reportagem.
“O técnico, que estava em estado grave, foi para a reanimação no final de março, o que indica a contaminação em torno do dia 20. Ele estava sob hidroxicloroquina-azitromicina, mas esse tratamento foi imediatamente interrompido assim que ele foi hospitalizado”, afirma.
“Ele não foi entubado, mas recebeu oxigênio de alto fluxo. Felizmente, ele conseguiu sair”, indica uma das fontes à revista L’Express.
“As mesmas testemunhas confirmam também que o médico próximo de Didier Raoult foi hospitalizado no final de março no IHU, onde recebeu tratamento à base de hidroxicloroquina e azitromicina. Seu estado era preocupante a ponto de receber visitas dos médicos de la Timone, que o submeteram ao Optiflow, um dispositivo de oxigênio a alto fluxo”.
“Ele ficou a um triz da reanimação”, afirmam as fontes à publicação francesa. “Sua hospitalização foi estendida até o fim de abril”.
“Quatro outras pessoas, dentre as quais duas secretarias, médico e técnico, testaram positivo, mas sem desenvolver sintomas”, precisa.
Negligência
“Todos trabalhavam no quarto andar, onde há um ‘open space’ reservado aos médicos, técnicos e um secretariado que se comunica com o escritório do professor Raoult. Essa situação não me surpreende porque não apenas há poucas janelas mas a maioria do círculo de Didier Raoult não usa mascara”, explica um funcionário do IHU à publicação.
“Didier Raoult também teria se contaminado? Se é impossível apresentar uma prova concreta, duas pessoas do IHU afirmam dispor de diversos indícios”, diz a reportagem.
“Ele foi declarado ‘caso contato’ (depois de ter estado em contato com pessoas diagnosticadas com o vírus) antes de sua viagem ao Senegal, o que não o impediu de partir (de 26 a 31 de março). Ele fez um teste sob anonimato e quando voltou, quando já havia seis casos positivos no mesmo andar, uma pessoa trouxe um teste anônimo positivo. Nós temos certeza que era dele, mas ele desmentiu, e como é um teste anônimo, não há nenhum modo de encontrá-lo”, afirma uma das fontes.
Yanis Roussel, diretor de comunicação do IHU Méditerranée Infection, recusou-se a responder às acusaçoes. “Não temos nenhum motivo para lhes responder”, disse à revista L’Express, segundo a qual Roussel ameaçou lhe processar “caso vocês publiquem informações falsas”.
“O pior é que Didier Raoult continua organizando e participando das reuniões de equipe, todas as terças-feiras, entre meio-dia e duas da tarde, e os seminários abertos a pessoas externas, organizados no mesmo horário às sextas-feiras, num anfiteatro do IHU, no qual os gestos sanitários são pouco ou não respeitados, tudo isso enquanto o foco de contaminação já estava se propagando”, detalha um dos funcionários do IHU.
“No dia 16 de abril, o professor Raoult convidou alguns fãs assim como o professor Toussaint para uma conferência sobre epidemiologia da Covid-19 durante a qual quase metade dos participantes não usava máscara e estava a menos de dois metros de distância”, lembra L’Express.
“Esses hábitos não mudaram desde então, mostram vídeos e fotos de um seminário organizado no dia 21 de maio, no qual não usavam máscara nem o professor Raoult, nem o seu convidado, o especialista autoproclamado Jean-Dominique Michel – um aguerrido partidário da hidroxicloroquina.
A reportagem lembra que o Código do Trabalho francês considera o empregador responsável pela saúde e segurança dos funcionários, “o que implica em período de pandemia impor o uso de máscara no local de trabalho”.
“Por que, então, ter mantido reuniões e seminários sem máscara, assumindo o risco de colocar a saúde de outras pessoas em perigo?”, perguntou a publicação a Yanis Roussel, que “se recusou a responder”.
A reportagem pondera que um foco de contaminação num hospital não tem nada de excepcional. No entanto, afirma, “a manutenção de um protocolo denunciado por uma vasta maioria da comunidade científica é surpreendente”.
“Hoje, se você vem ao IHU por causa de Covid-19, vão lhe dar mesmo assim hidroxicloroquina com azitromicina e zinco”, diz à L’Express uma fonte interna. Esses medicamentos são proibidos para o tratamento de Covid-19 no país.
“São poucos os médicos que não a prescrevem, pois eles temem que o sistema interno do IHU, que permite à direção acompanhar as prescrições, os traia. E os que não querem prescrevê-la fazem falsas declarações nesse sistema, para manter a paz”, explica.
“Didier Raoult continua fazendo a promoção do seu protocolo tanto em público quanto no privado, como mostra um e-mail obtido pela L’Express do dia 10 de março de 2021. Perguntado por um cirurgião sobre a necessidade de vacinar contra a Covid-19 um paciente com infecção crônica por uma bactéria Coxiella burnetii, contra a qual ele é tratado a base de hidroxicloroquina (plaquenil), o professor de Marselha responde que ‘a vacina Covid-19 não está em questão’, pois o paciente já está sob hidroxicloroquina, o que é ‘provavelmente amplamente suficiente’ para proteger da Covid-19”, revela.
Terror e negacionismo
“Há toda uma parte do IHU que funciona como uma espiral, com um chefe que nunca é contradito e que exerce um verdadeiro controle, que não hesita em esmagar ou desprezar publicamente os que não concordam com ele”, descreve um funcionário do IHU à revista francesa.
“Trata-se de alguém inegavelmente inteligente e carismático, mas é preciso considerar a força mental que ele exerce sobre os funcionários, em especial seu círculo mais próximo, que ele constituiu há anos. Se ele diz que o vírus se transmite principalmente pelas mãos e que ele não usa mascara, todo mundo acredita nele e o imita, por medo de aborrecê-lo ou para agradá-lo; se ele semeia dúvidas sobre a vacinação, alguns se recusam a se vacinar, até mesmo usam um discurso antivacina, ou tentam se vacinar escondido”, relata.
“Essa pressão teria sido atenuada depois do foco de contaminação por Covid-19.
‘Foi o único benefício dessa história’, dizem no IHU. Aproximadamente quinze colaboradores próximos de Didier Raoult teriam aproveitado sua ausência quando ele foi ao Senegal para se vacinar”.
Impunidade
“Estou confusa quanto ao que acontece em frente”, constata à Express uma médica do hospital de la Timone. “No começo, seus estudos instáveis poderiam nos fazer rir, mas agora constatamos comportamentos perigosos. E a AP-HM [que paga uma parte da equipe do IHU] não faz absolutamente nada contra essa situação enquanto toda a credibilidade da instituição é questionada: é incrível”, critica.
“Internamente, a inação da AP-HM exaspera também: ‘Todo mundo sabe o que acontece no IHU. Pessoas que entram em colapso, saem de licença, recorrem à medicina do trabalho, mas a AP-HM não faz nada, enquanto nós, sendo assalariados, somos todos prisioneiros dessa situação. Para mim, tudo isso é apenas uma questão de dinheiro”, avalia.
Como o DCM informou, uma reportagem da TV francesa M6 mostrou um esquema em que Didier Raoult e seus colaboradores rendem mais de 10 milhões de euros por ano à AP-HM graças à publicação em massa de estudos em revistas científicas dirigidas por pessoas próximas a eles.
A revista L’Express também cita uma série de apoios políticos a Didier Raoult: “de Renaud Muselier a Christian Estrosi (ambos de direita) e Philippe de Villiers (extrema direita), passando por Nicolas Sarkozy (direita) e Emmanuel Macron (centro-direita), que lhe visitou no dia 9 de abril de 2020 em Marselha, antes de se distanciar alguns meses mais tarde”.
“Muitos defendem-no vividamente há mais de um ano, mesmo quando suas previsões se revelaram falsas”, lembra o jornal.
Diferentes setores da sociedade francesa cobram uma reação das autoridades do país diante de um protocolo de medicamentos provados como ineficazes contra a Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde.
Na última quinta-feira, o jornalista francês Patrick Cohen disse na TV France 5 que o fenômeno Raoult “terá sido o ponto de encontro do poder das redes sociais, de uma midiatização desenfreada e de um dos piores ataques de desinformação e de ofensiva anticiência. Isso requer prestar contas perante o poder público, às autoridades sanitárias”.
No mesmo dia, as jornalistas Marie-France Etchegoin e Ariane Chemin lançaram o livro “Raoult, une folie française (Raoult, uma loucura francesa)”, uma investigação biográfica que “é também a história de uma loucura francesa, em uma época em que paixões e crenças prevalecem sobre a razão”.
Em novembro de 2020, Raoult foi convocado pela instância disciplinar do Conselho francês de medicina para prestar explicações em relação à denúncia de centenas de médicos contra ele por charlatanismo. O médico se disse vítima de um complô.