Por Kakay
“Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras. Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo.”
– Fernando Pessoa, na pessoa de Caeiro.
Quando o primeiro grito de “fora Bolsonaro” ecoou em frente à catedral de Brasília, em 29 de maio, eu senti que tinha valido a pena ter ido às ruas. Ainda com a dúvida sobre ir ou não pairando sobre todos nós –afinal, somos ferrenhos críticos de qualquer hipótese de aglomeração– eu percebi que a história tem que ser vivida com a intensidade do momento. Ninguém vive do passado e o futuro tem que ser construído no enfrentamento das adversidades. Com coragem e ousadia. Nosso momento agora é de nos posicionarmos frente a esse governo que mata mais do que o vírus. Esta constatação nos dá a legitimidade para sair às ruas.
E fui de verde e amarelo para a manifestação, como escrevi aqui. Uma das necessárias posturas no combate a esse grupo fascista é resgatar nossos valores e símbolos. Um bando de bárbaros nos invade a alma e nos tira o ar, rouba nossa esperança e alegria. Não podem roubar nossa identidade. É necessário reagir com muita literatura, discussões políticas, debates, propostas, apego à ciência e à liberdade. E bastante poesia e humor. Eles detestam poesia. Como dizia o poeta Vinicius de Moraes:
“Quem já passou por esta vida e não viveu
Pode ser mais mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu…”
Um dos pontos principais nesse embate com o mundo imaginário criado pelos mentirosos contumazes é não nos igualarmos a eles. Eles se apegam ao que criam e vivem uma realidade paralela. Se esses milicianos e seus seguidores não têm limites, cabe a nós impor, inclusive com as nossas ações. Pelo baixíssimo nível de boa parte dos que ocupam o poder, é imperioso nos policiarmos para não virar briga de rua, onde vale tudo.
O que deve nos nortear, neste momento, é o desnudar da política genocida adotada pelo presidente da República e seus auxiliares diretos, no tocante à pandemia. A CPI do Senado tem compromisso com os 460 mil brasileiros mortos pela irresponsabilidade do governo e com a dor imensurável dos milhões de parentes, amigos, companheiros. É evidente que a crise sanitária mataria, de qualquer maneira, muita gente, como aconteceu em todo mundo. Mas já há estudos e evidências de que boa parte do drama poderia ser evitado simplesmente seguindo a ciência. O governo fez uma opção pela morte ao politizar o vírus.
O depoimento da dra. Luana Araújo na CPI tratou o tema com objetividade ao falar da postura obscurantista: “Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente, estamos na vanguarda da estupidez mundial. É como se a gente estivesse escolhendo de que lado da borda da terra plana a gente vai pular”. Esta é a preocupação que devemos ter, de não entrarmos no mundo falso criado por eles.
O nosso foco é saber o porquê dessa atitude assassina e necrófila. Enquanto no Brasil, que optou deliberadamente por não comprar a vacina e que pregou o desrespeito às normas sanitárias básicas, ainda morrem quase 3 mil pessoas por dia, já tendo como número oficial 468 mil óbitos, nós vemos países como Portugal e Inglaterra, entre outros, comemorarem o êxito da política séria e obediente aos ditames da ciência, com nenhum morto por covid nos últimos dias.
É necessário responsabilizar, ainda que por omissão, diretamente o presidente da República e os que deram corpo à política negacionista. É preciso acordar deste pesadelo que atordoou a todos. A dor, a angústia, o medo da morte e a solidão das UTIs fazem com que nossa capacidade de reação seja comprometida. Por isto, esse grito que soltamos nas ruas fez bem ao país e à nossa sanidade. Ao sairmos desse círculo de giz invisível que nos sufoca e nos tira o ar, mostramos a nós mesmos a capacidade de indignarmos.
No dia 29, em cada manifestação pelo país afora, era possível sentir a presença dos que se foram, vencidos pelo vírus. E é também por eles que nós não podemos nos calar. O silêncio é cúmplice. Para que honremos todos os que realmente se dedicam ao enfrentamento da pandemia é urgente a nossa voz. E voltando a ocupar todos os espaços. Respeitando os que ainda optam pelo isolamento, certamente uma atitude mais responsável, mas dando cara e cor ao nosso brado de quem quer o país de volta. Mirando-nos em Clarice Lispector:
“O mais difícil é não fazer nada: ficar sem fazer nada é a nudez total”
“Perder-se é um achar perigoso”.
Não é só cuidar da vida, que já seria o bastante, mas é preciso enfrentar o desmantelo a que estamos sendo submetidos. E enfrentar às claras, com vigor, pois esses bárbaros não têm limites. É só lembrar que, numa reunião ministerial, com a presença do presidente da República, o ministro do Meio Ambiente assumiu, propôs e defendeu vigorosamente aproveitar que a imprensa estava com a atenção voltada para a pandemia e “mudar as regras para passar a boiada”. É muito grave. Não podemos nos omitir. Enquanto estamos perplexos com as insanidades no trato com esse vírus maldito, o país vai sendo entregue, saqueado. Em todas as áreas.
Outra vez o presidente da Fundação Palmares ataca símbolos da luta negra no país e decide retirar o logotipo da Fundação: “Machado de Xangô”, por fazer referência ao candomblé, religião de matriz africana. Ele é quem disse que a escravidão foi benéfica pois “os descendentes vivem melhor no Brasil do que os negros da África”.
É disso que se trata. Por isso saímos às ruas. Para nos fazer ouvir. Para deixar claro que o humanismo vencerá a barbárie. Se cada um de nós falar um basta, em voz alta ou simbolicamente, nós poderemos ter de volta uma vida que seja digna de ser vivida. E escolhermos quem estará ao nosso lado é o que definirá que país sairá deste abismo que nos jogaram. Depende de nós.
Lembrando nosso Ernest Hemingway:
“Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
E isso importa?
Mais do que a própria guerra.”