Os jovens brasileiros não sabem, felizmente, o que é viver sob um regime de inflação crônica. Um pesadelo, essencialmente. Foi o que aconteceu no Brasil por anos, décadas — até que o Plano Real restabelecesse a estabilidade na economia. Tão bizarra era a vida que os supermercados tinham funcionários incumbidos simplesmente de remarcar os preços. Foi dentro desse cenário que papai escreveu o texto abaixo em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, A Língua Nossa de Cada Dia. (Aqui, outros artigos da série.) A coluna foi publicada entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1980. Uma das marcas amargamente inesquecíveis para quem vivia sob a inflação eram os anúncios de aumentos de preços — a partir da zero hora de amanhã …
Quando se anunciam novos aumentos de preços, um pequeno problema que se coloca é o da data da vigência deles. Tornou-se praxe entre nós dizer que começam a vigorar a partir de zero hora do dia tal ou qual. Mas afinal de contas que hora é essa? Existe?
Postas de lado abstrações mais profundas, parece fora de dúvida que o dia, aquilo que o senso comum entende como conjunto do dia e da noite, termina às 24 horas, ou meia-noite. A fração de segundo seguinte já é um outro dia. É difícil encaixar aí uma zero hora, ou seja, uma hora inexistente, vazia – a não ser, evidentemente, como mera força de expressão, para indicar o ponto de partida para um novo dia.
Acontece, entretanto, que esse ponto de partida é efetivamente o dia anterior (meia-noite em ponto) . Ou seja, o novo dia. Observe-se a diferença: em instrumentos de medição, o zero é em geral, e de fato, o ponto inicial; com horas ou dias, tal não sucede – na prática, pelo menos.
Por que, pois, o uso generalizado de zero hora? Provavelmente por uma razão de ordem prática. Se algo começa a vigorar a partir do dia 15, digamos, como anunciá-lo com precisão, no dia 14? Uma fórmula: a gasolina aumenta hoje à meia-noite; outra: a gasolina aumenta amanhã à zero hora. Na prática, a diferença é nenhuma, mas há uma sutil diferença de natureza psicológica. O aumento que vigorará “amanhã” parece menos penoso do que aquele que começa “já hoje”. É por isso que, quando se quer dar a entender que a carestia se aguça aceleradamente, os aumentos de preços vigoram a partir da meia-noite de “hoje”: se se quer dar a impressão oposta, eles vigoram de zero horra de “amanhã” em diante. Sutil, talvez, mas verdadeiro.
Talvez valha a pena chamar a atenção para um engano mais ou menos frequente: pode-se entender, como ficou dito, zero hora como o ponto de partida de um novo dia, mas não como o ponto final do dia anterior. Assim, zero hora do dia 15 são os primeiros segundos do dia 15 e não os últimos do dia 14. No dia 14, só se poderá anunciar algum aumento para a zero hora de amanhã (se o aumento começar efetivamente no dia 15) e não para a zero hora de hoje, como às vezes se lê.