Publicado na ConJur
Por Lenio Luiz Streck
Leio que Fernando Haddad e Rui Falcão, por meio dos advogados Mauro Menezes, Marco Aurélio de Carvalho, Gustavo T. Ramos e Gabriel Lopes, ingressaram com mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal para compelir o presidente da Câmara dos Deputados a colocar à mesa pedido de impeachment.
Há um direito líquido e certo dos signatários de pedido de impeachment, uma vez presentes os requisitos, a que o pedido de impedimento seja apresentado em mesa. Diz o Regimento Interno:
Art. 218. Omissis. § 2º Recebida a denúncia pelo Presidente, verificada a existência dos requisitos de que trata o parágrafo anterior, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os Partidos.
Qual é a parte do vernáculo que está obscura? Precisaremos ir ao início da hermenêutica clássica, em Fr. Schleiermacher buscar resolver os mal-entendidos desse dispositivo? Mas quais?
A resposta é fácil. Nenhum. Não há qualquer obscuridade a obnubilar a interpretação. Correndo o risco da platitude, o que falta é vontade política do presidente.
Mas isso não significa que o país possa ficar refém dessa vontade política. Não está escrito no regimento interno que o presidente pode fazer o que quiser com um pedido de impeachment que contenha (preencha) os requisitos legais. Essa análise não é de conveniência política. Quais são os requisitos? O próprio artigo 218 diz:
§ 1º A denúncia, assinada pelo denunciante e com firma reconhecida, deverá ser acompanhada de documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com indicação do local onde possam ser encontrados, bem como, se for o caso, do rol das testemunhas, em número de cinco, no mínimo.
E supondo que o presidente entenda não presentes os requisitos, o que ele não pode fazer é se omitir. Deverá fundamentar. Isto é: deverá, por accountability, dizer por que não cumpre o parágrafo segundo do referido artigo 218. Afinal, na prática, o que significa não dizer nem que sim nem que não? Simples: é o “não posicionamento” que é sempre um posicionamento.
Isto porque ele, o presidente da Câmara, não tem poder absoluto. Ninguém na República possui esse “Estado sou Eu”. Acaciano isso. Não fosse assim, não seria uma República.
Então, se ninguém tem poder absoluto, quem pode obrigar ou alterar o comportamento de uma autoridade que não cumpre a lei? Simples de novo: quem pode fazê-lo é uma autoridade que está autorizada pelo sistema jurídico. No caso, é o STF. E é isso que os signatários do writ estão buscando.
Obstáculos? Sim. O STF ao longo do tempo construiu precedentes pelos quais matéria interna corporis não é objeto de exame da Corte. Quer dizer, até por aí. Nem toda matéria interna corporis está imune. E o que é essa matéria? Qual é o estrito conceito de matéria interna corporis? Por exemplo, o caso da CPI da Pandemia era interna corporis? Não? Pois é.
De todo modo, ad argumentandum tantum, supondo que essa matéria (art. 218) seja considerada interna corporis stricto sensu, isso não quer dizer que o STF não possa mudar ou rearranjar seu precedente. Afinal, desde quando o Brasil, que sequer common law é, adota uma doutrina estrita de precedentes vinculantes (que por si só é controversa no próprio common law)? No Brasil, afinal, o que vincula não é “o precedente”, ponto, mas a lei a que o precedente se refere. Esse o busílis. O que tento mostrar há tantos anos é que
a autoridade do Direito não pode ser substituída pela autoridade do precedente.
Explico: Parece evidente que esse poder arbitrário e absoluto do Presidente da Câmara não pode ser enquadrado nesse rol de “blindagem constitucional”. Porque ele atinge a própria democracia. Possui efeitos colaterais.
E uma Suprema Corte não pode dizer que nada pode fazer em relação a esse poder. Isto porque o Regimento Interno também pode ser inconstitucional. Se o Regimento, por exemplo, permite ou determina atos discriminatórios, por obvio que não estará compreendido na blindagem interna corporis. Portanto, é evidente que há limites.
Na verdade, o problema não está no RICD e, sim, na sua interpretação. Lendo bem, o artigo 218 do RICD não dá esse poder absoluto. O Regimento diz que, preenchidos requisitos, o presidente possui, não a prerrogativa, mas, sim, o dever de colocar em pauta o pedido de impeachment. Tem a obrigação de proceder conforme lhe determina o artigo 218. Brincando com o positivismo de Hart, ela é uma regra que confere poderes, mas que também impõe deveres. Não é questão de conveniência.
Ora, erroneamente vem sendo lido — e dito — que o presidente tem o poder discricionário. Não é isso que se lê no artigo 218. Mas não é, mesmo. O que é isto — seguir uma regra?
De todo modo, como falei, mesmo que se entenda que, ao fim e ao cabo, quem manda, mesmo, é o presidente da Câmara, que pauta se assim lhe aprouver, mesmo assim isso pode ser corrigido. Entra aí o mandado de segurança dos impetrantes. Para que serve o Judiciário numa República baseada na tripartição de poderes?
E se o próprio STF entender, em um primeiro olhar, que existe precedente a favor do império do interna corporis, pode alterá-lo.
Nenhuma corte necessita ser coerente no erro. Não deve, inclusive. Esse é o ponto. A integridade do direito corrige uma errada coerência, como bem anota Dworkin, ao explicar a diferencia entre coerência e integridade. Ele exemplifica magnificamente: a Corte Inglesa vinha dizendo, décadas após décadas, que todas as categorias respondiam por danos causados por imprudência/falta de cuidado (“carlessness“)… menos os advogados. Então um Lord lembrou que já não podiam ser coerentes no erro. E alteraram o precedente. Simples assim.
Dworkin explica isso: “A consistência, entendida de forma estrita, exigiria que se mantivesse a exceção, mas a integridade rejeita o tratamento especial dedicado a uma categoria a não ser que possa ser justificado por princípio, o que é improvável. A Câmara dos Lordes acabou com o privilégio: assim, preferiu a integridade à consistência estrita.”1
Mutatis, mutandis, estamos com algo parecido, por aqui, no âmbito dos precedentes sobre o sentido e o alcance de “matéria interna corporis“. A integridade do direito tem de ser soberana.
Não creio que algo tão relevante como um pedido de impeachment possa ser enquadrado nesse conceito. Seria admitir que um presidente da Câmara é o único agente do Estado que possui poder absoluto. Poder independente não quer dizer “soberano”. Porque soberano é o país. Uma autoridade pode muito. Mas não pode tudo, com o perdão da platitude.
Ainda numa palavra final: (i) se o RICD dá o poder absoluto ao presidente, ele é inconstitucional; (ii) se o RICD não dá esse poder e está sendo mal interpretado, então fica mais fácil ainda de o STF determinar a resposta adequada à Constituição.
Tertius non datur.
1 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Belknapp Press, p. 220.