Publicado originalmente em Rede Brasil Atual:
A eleição da professora universitária de origem mapuche Elisa Loncón para presidir a Convenção Constituinte do Chile foi um bom começo. Não quer dizer que o desafio da maioria dos representantes do povo chileno no colegiado recém-instalado será fácil. Ao contrário, o propósito de enterrar de vez o conjunto de leis instituído pela ditadura de Augusto Pinochet há 31 anos enfrentará muitas resistências. De todo modo, Elisa Loncón, intelectual, mulher, indígena e independente, foi eleita com projeto de construção de um Estado plurinacional no Chile. Assim, sua condução ao comando da Constituinte, com 96 do 155 votos possíveis no último dia 4, vem ao encontro das expectativas dos grandes movimentos sociais e populares da última década, que tanto conquistaram a instalação da Constituinte quanto uma boa representação nesse fórum restaurador.
A etnia Mapuche, maior comunidade indígena do Chile, tem uma longa história de resistência, pré e pós colonização espanhola. “É bom lembrar que os Mapuche travaram contra os espanhóis uma luta de resistência de dois séculos. E que a região sul do país (onde predominam) só acabou incorporada ao Chile depois da independência, no início do século 19. Então, trata-se de algo verdadeiramente inédito na história chilena”, diz o cientista político André Káysel, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em entrevista a Marilu Cabañas, na Rádio Brasil Atual, Káysel observa o momento chileno como uma oportunidade histórica.
São mais de quatro décadas de neoliberalismo em se que impôs a ideia de meritocracia, em um Estado regulado pelo mercado. “E assim, abririam-se as oportunidades e as pessoas conquistariam um lugar ao sol.” Só que não, observa o cientista.
Elisa Loncón representa encontro de causas
“Desde as manifestações de 2019, e até mesmo as de antes, dos estudantes no início da década passada, ficamos sabendo que isso não é verdade. A população deixou claro que não tem lugar para ela nesse modelo”, resume. E grande parte da luta dos Mapuche nos últimos anos se concentrou na questão do acesso à terra, à água, à riqueza explorada de seus territórios ancestrais. “É interessante observar que essas lutas convergiram desde 2019 com as lutas dos setores populares e das classes médias urbanas. Cada vez mais perceberam o quanto foram desfavorecidas por esse modelo neoliberal, pela privatização dos serviços públicos e o desmonte dos serviços sociais.”
O professor da Unicamp considera que a ofensiva liberal no Chile foi com muita sede ao pote, e assim o fracasso abateu-se por toda a população. “O Chile é um país onde se pagam salários não muito diferentes dos do Paraguai, mas onde os preços são muito parecidos com os da Espanha”, ironiza. “Mas o que é interessante, agora, é que justamente agendas bastante heterogêneas (das classes médias urbanas às maiorias excluídas) convergem não apenas para superar o modelo liberal, mas para questionar o modo de vida baseado no consumo”, avalia. Para André Káysel, o país clama por uma sociedade sustentável, e as bandeiras das comunidades originárias apontam para essa direção. “O bem viver, o que justamente vai nessa direção de um respeito à natureza, a repensar a relação homem natureza. Isso é bastante radical e inovador.”
Caminho difícil
Mas quais seriam as chances concretas de ocorrerem essas mudanças radicais a partir da Constituinte no Chile? “O caminho será difícil. No mesmo dia em que os 155 constituintes estavam tomando posse, os carabineiros reprimiam brutalmente manifestantes. Inclusive agredindo constituintes no exercício de suas funções. Isso mostra que o aparato repressivo do Estado chileno, forjado e consolidado na ditadura de Pinochet, está mandando um recado de que não aceitará tranquilamente um processo de radicalização democrática em curso no país”, afirma o professor. E ele lembra que a repressão não parou desde as grandes mobilizações de 2019. “Há muitas denúncias de morte, desaparecidos. Pessoas com mutilações oculares há centenas, ainda há presos políticos.”
De todo modo, o fato é que o governo de Sebástian Piñera está nas cordas, com popularidade baixíssima, e isso se refletiu nas eleições de maio para a Constituinte. Além disso, essa rejeição ao atual governo teve impacto também nas escolhas dos governos regionais e prefeituras. “Mas o aparelho de Estado repressivo, legado da ditadura, está claramente avisando que não vai ser fácil”, pondera. Segundo o cientista político, setores da burguesia chilena não estão dispostos a abrir mão de seus privilégios. “Seus lucros leoninos”, como define, são protegidos pela atual Constituição (de 1980). Portanto, a elite branca chilena poderá recorrer a esse aparelho repressivo do Estado para reverter ou limitar os avanços democráticos. “Então, isso exigirá muita paciência, resiliência e firmeza dos constituintes. Mapuches, mulheres, movimentos populares, movimentos sociais.” E das ruas.
Estado de todos os povos
A conquista da paridade de gênero para a eleição constituinte no Chile é uma experiência inédita no mundo. E a eleição de Elisa Loncón se apoiou não só em sua origem, como também na força do movimento das mulheres durante esse processo. “Aliás, é bom lembrar que entre as violações de direitos humanos cometidas pelos carabineiros durante a repressão à revolta social de 2019 há também muitas denúncias de violações sexuais. Então, o feminismo é uma força de vanguarda no Chile nesse momento. De maneira mais geral, eu diria que com a paridade de gênero, associada a um horizonte de plurinacionalidade e de interculturalidade, o Chile vai escrever um novo capítulo na história do constitucionalismo sul-americano”, diz Káysel. O discurso de Elisa Loncón vai nessa direção.