Os filósofos políticos da Antiguidade e do início da Era Moderna eram revolucionários idealistas. A começar por Platão. Ele não se conformava com os sistemas de governo prevalecentes, nos quais via graves ameaças à cidadania. A tirania, por si mesma, era uma negação da cidadania; a timocracia ou oligarquia, governo dos ricos, interessava exclusivamente aos poderosos. Mas também a democracia, o governo dos cidadãos, tinha defeitos e riscos. Podia cair nas mãos de demagogos irresponsáveis.
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A solução proposta por Platão era o governo dos sábios. Tentou duas vezes, a convite de Dion de Siracusa, sobrinho do tirano Dionisio. Das duas vezes saiu expulso de lá. Sua ideia era muito boa, mas inviável. Era impraticável conciliar tirania, timocracia e democracia com governo dos sábios. Alguém tinha que nomear os sábios, e nos três sistemas quem nomeasse ou indicasse os sábios seria o que exerceria o poder de fato. Ou seja, a estrutura desses sistemas não mudaria.
A Idade Moderna reinventou a democracia grega, com um escopo inicialmente limitado. De fato, a palavra democracia não significa poder do povo, como muitos imaginam, mas poder dos demos, proprietários de glebas, conforme estavam divididas as terras na Ática clássica. Os filósofos políticos modernos estenderam a cidadania aos proprietários em geral, os burgueses. A História encarregou-se de estendê-la a não proprietários, mulheres, pobres e, no Brasil, até jovens de 16 anos.
Entretanto, o dilema de Platão não ficou resolvido. Quanto mais larga se faz a cidadania, maiores os riscos de o poder democrático cair nas mãos de um paranoico com dons demagógicos. Esta, para os brasileiros, não é uma divagação inócua, vazia de conteúdo. Sabemos o que significou a eleição democrática de Bolsonaro em 2019. Os alemães souberam o que foi a vitória eleitoral do partido nazista nas eleições dos anos 30, sob as admiráveis balizas democráticas da República de Weimar.
Essas reflexões me vieram à mente ao escrever, em 2008, “A crise da Globalização”, quando tentei examinar algumas consequências de uma das maiores crises econômicas da história. Dediquei um capítulo ao dilema de Platão: como evitar que, na era nuclear, o poder de desencadear uma guerra atômica destrutiva do mundo caísse nas mãos de um demagogo. Depois me dei conta de que não era apenas a questão da guerra. Outros aspectos da política atual também estão em jogo.
O centro da questão é a funcionalidade do Estado contemporâneo. Há questões, além de guerra e paz, que transcendem o tempo ou os tempos de um governante. Por exemplo: Relações Internacionais, a questão ambiental, o desenvolvimento científico-tecnológico, a questão genética, a questão dos Direitos Humanos. Nos termos de Platão, esses temas deveriam ser entregues a um governo de sábios. Como conciliar isso, na prática, com a democracia de cidadania ampliada?
Recuar para um sistema não democrático seria impensável. Portanto, podemos buscar, idealmente (como Platão), uma síntese em nível superior. Há questões que podem ser tratadas no tempo próprio de um governante, e que não se traduzem em riscos irreparáveis para o futuro. Erros, omissões ou mesmo corrupção governamental, voluntários ou não, podem ser revertidos pelo processo normal de alternância do poder, próprio da democracia. A demagogia pode ser o preço a pagar por isso.
O Estado democrático funcional dividiria, pois, funções do Estado, prerrogativas do Presidente com mandato longo, de funções do Governo, prerrogativas de um Primeiro-Ministro nomeado por ele, de mandato mais curto. O Presidente teria um Conselho de especialistas (sábios), recrutados no mundo civil, para orientar as decisões de longo prazo do sistema estatal. O Primeiro-Ministro teria liberdade de recrutar seu Ministério, preferivelmente, entre políticos eleitos, integrantes de uma aliança de partidos majoritários no Parlamento, e entre personalidades do mundo civil.
O sistema democrático de cidadania ampliada seria integralmente respeitado. A vontade do povo se expressaria na eleição de um Presidente em dois turnos, e na eleição do Parlamento de forma proporcional. Os partidos políticos se fortaleceriam na busca de alianças propositivas, e não apenas pelo exercício da demagogia. E os riscos de eleição de um demagogo a que fossem incumbidas funções de interesse vital, não só para o país, mas para a Humanidade, seriam grandemente minimizados, na medida da elevação do próprio nível da campanha presidencial.
Claro que não há nem nunca haverá sistemas políticos perfeitos. Estou falando de um padrão ocidental que deve ser aperfeiçoado. Os orientais tem outras tradições, outros costumes e outra história política. É esdrúxula a pretensão ocidental, sobretudo norte-americana, de lhes impor um sistema que se pretende universal, mas que elegeu Hitler, Bolsonaro e um Donald Trump. E que, portanto, está longe da perfeição. Na marcha da história, entretanto, é possível antever uma síntese virtuosa no futuro.
Iniciei este artigo evocando um livro meu escrito em 2008. É proposital. Gostaria de que as ideias aqui apresentadas não fossem confundidas com o golpismo implícito nas sugestões do tal regime semipresidencialista posto em discussão recentemente na Câmara. Não quero um Presidente sem poderes, mas um Estado funcional, onde o Presidente tem reforçados seus poderes diretos, através de um Conselho nomeado por ele, e indiretos, através do Primeiro-Ministro também nomeado.
Ao Ministério caberiam sobretudo os assuntos de Economia e de Administração Pública, divididos em áreas funcionais: Planejamento e Orçamento; Fazenda, Banco Central, Emprego e Renda; Indústria, Comércio, Serviços; Desenvolvimento Regional; Desenvolvimento Social (Previdência, Saúde, Saneamento Básico); Cultura etc. Um Ministério desse porte, assim como o Conselho mais restrito do Presidente, possibilitariam reuniões funcionais com o Primeiro-Ministro e o Presidente, com eficiência institucional máxima do Estado.
Os Ministérios do Planejamento e Orçamento; da Fazenda; do Emprego e Renda, junto com o Banco Central, definiriam os parâmetros da expansão monetária, do investimento público, da liquidez desejada da economia e da busca do pleno emprego. Esta última exprimiria o objetivo central da política econômica do Estado social-desenvolvimentista, em contraposição às formulações liberais e neoliberais que pretendem deixar às chamadas livres forças do mercado as flutuações do emprego, geradoras de grande insegurança social.