Publicado originalmente no Blog do Moisés Mendes
O incêndio da estátua de Borba Gato em São Paulo atualiza o debate sobre a destruição de monumentos erguidos para bandidos homenageados por crueldades praticadas em nome do poder dos brancos.
A controvérsia sempre tem abordagens aparentemente históricas, que de históricas não têm nada. Dizem, por exemplo, que Borba Gato é parte da construção do Brasil e que sua figura deve ficar onde a colocaram, não como homenagem, mas como marca de um tempo.
É uma falsa questão histórica. Assim, um bandido de bronze ficaria onde o largaram porque, mais do que bandido, é uma figura importante de uma época. No mesmo raciocínio, acrescentam que há graduações de bandidos, e aí surgem as questões ditas subjetivas.
Os argumentos são simplórios demais. Dizem até que os bandidos homenageados deveriam ser preservados porque já estão nos livros de História, na literatura e nos relatos orais que tratam do que eles fizeram.
Não é bem assim. Bandidos a serviço de escravistas, como Borga Gato, devem ser estudados e podem fazer parte de representações em livros escolares, na literatura, no cinema, nas artes em geral, em museus e até nos desfiles de escolas de samba.
Mas estátuas públicas são mais do que representações artísticas ou material didático e/ou educativo. Ninguém ergue uma estátua em espaços que são de todos apenas para que as pessoas observem, estudem e reflitam sobre o representado.
Aquele Borba Gato tenebroso, inclusive como ‘arte’, foi colocado em Santo Amaro em 1962 porque ainda representava o poder político e econômico que decidiu homenageá-lo.
Não há mais o que discutir sobre a validade da existência e da manutenção de estátuas como essa, de criminosos, déspotas, ditadores e similares.
A Alemanha preserva casamatas usadas pelos nazistas, e prédios com marcas da guerra ficaram como estavam. Para que as lições trágicas de um acontecimento único estejam sempre presentes.
Mas ninguém imagina que a Alemanha possa erguer uma estátua para Hitler em Berlim, como fizeram com Borba Gato em São Paulo. Ah, mas Borba Gato não foi um Hitler. Para os negros e os índios que ele caçou e matou, claro que foi.
Os jovens, com vigor físico e ímpeto para a afronta e a reparação que os mais velhos não se atrevem a fazer, estão encarregados de estudar o destino de outras estátuas de facínoras. Jovens têm discernimento para saber o que deve ser preservado.
Claro que há riscos. Negros descendentes de escravos podem ser processados por enfrentar a representação simbólica, acintosa e criminosa dos algozes dos
seus ancestrais.
Haverá sempre alguém argumentando diante de um negro (hoje perseguido pela polícia e ignorado pela Justiça) que ele é um vândalo atentando contra o patrimônio público.
Mesmo que esse patrimônio seja a representação de alguém que ficou célebre por perseguir e matar negros em nome dos senhores brancos e que por isso mesmo obteve reconhecimento público.
Tente explicar a uma criança ou a um adolescente porque eles passam todos os dias a caminho da escola por uma estátua de um Borba Gato ou de alguém da mesma laia de Borba Gato. Não há como explicar.
É inacreditável que ainda existam, sob todo tipo de pretexto, estátuas de Borbas Gatos. Livrem-se dos bandidos e eliminem por antecipação a possibilidade de alguém um dia erguer impunemente em praça pública a estátua de Bolsonaro rodeado de estátuas de milicianos.