Publicado no Cafezinho
Por Miguel do Rosário
O famigerado voto impresso foi derrotado ontem no plenário da Câmara dos Deputados.
Como se tratava de uma Emenda Constitucional, precisava de 308 votos.
Teve “apenas” 229.
Foi uma importante vitória da oposição, mas com um gostinho amargo, porque os deputados contrários foram apenas 218. Havia expectativa de uma vitória maior.
Entretanto, foi indiscutivelmente uma vitória, ponto, e num tema que o presidente da república vinha tratando como central para sua narrativa.
Em todas as suas manifestações públicas das últimas semanas, incluindo a realizada no cercadinho hoje, quarta-feira, dia seguinte à derrubada da PEC na Câmara, Bolsonaro insiste na mentira de que houve fraude nas eleições de 2018.
Hoje Bolsonaro estava particularmente desequilibrado. Enquanto repetia, por três ou quatro vezes, que não tinha provas, diz que hackers foram contratados em 2018 para “desviar” 12 milhões de votos. E desviaram. Como esses desvios não teriam sido suficientes para derrotá-lo, então os hackers não foram pagos, e por isso denunciaram o esquema.
As falas de Bolsonaro mostram que o presidente, diante da expectativa de derrota, decidiu apelar para um jogo pesadíssimo, no qual a pauta do voto impresso tem uma função estratégica, por lhe dar a oportunidade de colocar em cheque o sistema eleitoral brasileiro.
Bolsonaro faz o jogo do caos.
Paradoxalmente, esse jogo sujo ajuda a clarificar o debate, ao evidenciar que a polarização se dá entre a democracia de um lado e a barbárie de outro.
A PEC do voto impresso, neste sentido, serviu a um propósito interessante, de mostrar a força real do governo e da oposição.
O gostinho amargo da vitória sobre o voto impresso também se deu porque o placar deixou claro que o impeachment ainda é uma utopia. O governo tem votos para barrá-lo. Para impedir um impeachment, o governo precisa contar com um mínimo de 172 deputados.
Por outro lado, a votação permitiu à sociedade observar o grau de confiabilidade dos partidos.
Assim que a votação foi concluída, choveram gráficos sobre o grau de “traição” dos partidos em relação a orientação de suas lideranças.
E o que vimos foi triste.
Partidos de centro, por exemplo, cujos líderes orientaram duramente pela rejeição à proposta, registraram baixíssimos percentuais de fidelidade.
No caso do DEM, por exemplo, cujo presidente, o ex-prefeito ACM Neto, tenta se promover como um político de oposição a Bolsonaro, o grau de fidelidade foi de apenas 38%. A maioria dos deputados do DEM votou em favor do voto impresso. A mesma coisa vale para o PSD, o MDB e o PSDB.
Na esquerda, dois partidos passaram vexame, o PSB e o PDT. O primeiro registrou um percentual de fidelidade de 60%, 11 de seus deputados abraçaram a causa bolsonarista. Já o PDT viu 6 de seus deputados votando em favor do voto impresso, contra a orientação da legenda.
O caso do PDT talvez seja o mais constrangedor, porque o partido iniciou sua participação no debate em maio, com uma postagem de seu presidente nacional, Carlos Lupi, em favor do voto impresso.
Após receber uma saraivada de críticas, a opinião de Lupi foi abraçada por Ciro Gomes, que saiu em sua defesa. Toda a imprensa, então, passou a divulgar que Ciro e o PDT apoiavam o voto impresso.
As críticas do campo progressista ao voto impresso, porém, se avolumaram, e o partido optou pelo silêncio (constrangido). Parte da militância cirista passou a defender o voto impresso com unhas e dentes. Entre os argumentos brandidos estavam o de que “Lula sancionou em 2005”, ou que “todos os partidos aprovaram em 2015”.
A pauta do voto impresso sempre foi idiota. Era idiota em 2005, em 2009, em 2015, e continua sendo idiota hoje, com o agravante de que agora é também golpista. Se Lula o sancionou em 2005 e “todos os partidos” o aprovaram em 2015, é porque erraram. A ideia era idiota.
Em 2014, Dilma havia vencido as eleições de forma apertada, e o PSDB deflagrou uma campanha virulenta para desacreditar o pleito. Aécio Neves, que fora o candidato da legenda, e presidia o partido, mais tarde seria flagrado, numa conversa com Joesley Batista, admitindo que pedira a recontagem dos votos apenas para “encher o saco do PT”.
O fato é a postura do PSDB gerou um clima de desconfiança, que acabou beneficiando a aprovação do projeto de autoria do então deputado Jair Bolsonaro, em 2015. A presidenta Dilma Rousseff, mais tarde, numa decisão sensata, vetou.
O veto seria derrubado, meses depois, por articulação de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, mas a proposta acabaria sendo declarada inconstitucional pelo STF em 2020.
Enfim, convocar a opinião dos partidos no passado é um argumento desesperado para justificar a estupidez de se defender, agora, um projeto retrógrado e insensato como esse.
O sistema eleitoral brasileiro é moderno, ágil e confiável. É uma das poucas coisas das quais podemos nos orgulhar perante o mundo. O argumento de que países desenvolvidos não o utilizam é apenas viralatismo.
Divulgado o resultado da votação de ontem, os internautas descobriram ainda que o presidente do PDT do Rio Grande do Sul, o deputado Pompeo de Mattos, votou em favor do voto impresso.
A deputada Tábata Amaral, que ainda consta no painel da Câmara como membro do PDT, votou contra a proposta.
A posição do PDT, em todo esse imbróglio, foi absolutamente esquizofrênica. Os dois titulares da Comissão Especial que analisava a proposta, Pompeo de Mattos e Paulo Ramos, passaram meses defendendo a importância da impressão do voto. O presidente nacional da legenda, Carlos Lupi, como já dissemos, postou em suas redes em favor da proposta, publicou artigos no site do partido, e participou de lives em que insistia na sua importância.
E aí, no dia da votação, o líder do PDT, o deputado Wolney Queiroz (PE), diz que o partido, apesar de ser a favor da proposta, iria orientar contra, porque não queria se associar às chantagens e ameaças de golpismo de Bolsonaro. Para explicar porque o PDT era a favor do voto impresso, Queiroz retoma a velha história do escândalo do Proconsult, do início da década de 80. Para usar um termo da moda, é um argumento “cringe”, além de remeter a um caudilhismo irracional, que é se submeter a uma liderança morta há 20 anos, cuja opinião sobre um tema tecnológico atual não podemos perguntar (porque está morta).
Essa trapalhada do PDT traz naturalmente prejuízos políticos para a candidatura Ciro Gomes.
O partido já enfrenta crises recorrentes de imagem, sempre que vê uma parte de seus membros desrespeitando a orientação da liderança do partido e votando em favor de projetos apoiados pelo governo. Em geral são quatro ou cinco deputados que assim o faziam, incluindo Tábata Amaral.
Dessa vez, foram seis deputados, não incluindo a Tábata, que traíram o partido.
Mais grave, porém, é lembrar que o PDT se manteve em silêncio cúmplice em relação a um tema que tem sido usado por Bolsonaro para deslegitimar o processo eleitoral e a própria democracia brasileira. Apenas na última hora, quando a tensão política lhe forçou a ter juízo, alguém com posição de liderança no PDT se posicionou manifestamente contra a aberração bolsonarista. As contas oficiais do partido, todavia, ainda se calam, constrangidas, sobre o tema.