Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Vi há alguns anos, quando ainda morava em Xangai, o filme “Flores raras”, dirigido por Bruno Barreto, com Glória Pires.
Como foi bom ver um grande filme brasileiro estando tão distante do nosso querido país!
O filme é a estória do atribulado romance entre a paisagista e urbanista, Lotta Macedo Soares, uma das responsáveis pelo planejamento do Aterro e Parque do Flamengo, e a poeta americana, Elizabeth Bishop.
Conversando recentemente com minha mãe, lembrei do filme e do poema que enquadra o filme, um poema lindo, lindo, da Elizabeth, chamado “One art” (“Certa arte”). E resolvi reler o poema e rever o filme.
Dessa vez, gostei ainda mais do que da primeira. Bruno Barreto mostra várias coisas bonitas – o maravilhoso Rio de Janeiro dos anos 1950, por exemplo –, mas a mais bonita é a maneira como ele abre o filme com esse poema, ainda incompleto e embrionário, e termina com ele, acabado e comovente.
Fica subentendido que Elizabeth só pôde concluir o poema, que trata da arte de perder, depois de ter vivenciado e sofrido a perda – a perda catastrófica da pessoa amada.
O poema é este:
One Art
The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.
—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
O meu gentil leitor não tem obrigação nenhuma de saber inglês. Assim, traduzo, sacrificando, porém, a rima:
Certa arte
A arte de perder não é difícil de aprender;
tantas coisas parecem repletas da intenção
de serem perdidas que sua perda não é nenhum desastre.
Perca algo todo dia. Aceite a afobação
de chaves perdidas, a hora mal-empregada.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Pratique então perder mais fundo, perder mais rápido:
lugares, e nomes, e para onde você queria viajar.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Perdi o relógio de pulso da minha mãe. E olhe só! a minha última,
ou penúltima, de três casas queridas, se foi.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Perdi duas cidades, lindas. E, mais ainda,
reinados que tinha, dois rios, um continente.
Sinto falta deles, mas não foi um desastre.
— Mesmo perder você (a voz alegre, um gesto
que amo) não terei mentido. É evidente
a arte de perder não é tão difícil de aprender
embora pareça (Escreva!) um desastre.
Poesia é, por definição, aquilo que resiste, heroica e obstinadamente, à tradução. Perder a rima, a musicalidade da rima, é uma perda irreparável, eu sei. Há quem questione se vale a pena traduzir assim. Encontrei na internet algumas traduções do poema, que procuram recriar as rimas em português, mas são desastrosas. Melhor nem ter tentado recriá-las. Creio que consegui preservar, pelo menos, o ritmo e o sentido.
O poema de Bishop é uma pequena obra-prima, não é mesmo? A força das palavras! A sua capacidade de evocar o sofrimento, de estilizá-lo e torná-lo, assim, um pouco mais suportável! A linguagem é simples, como uma conversa. Mas vai num crescendo, e vamos percebendo, aos poucos, que a arte de perder, ao contrário do que se proclama insistentemente, em refrão repetido a cada verso, não é nada fácil de aprender.
As perdas no início são pequenas, triviais, “chaves”, “a hora mal-empregada”. Em seguida, “lugares”, “nomes”, e “para onde se queria viajar”. Mas aí vem a referência à mãe, e às casas queridas, que aumentam a intensidade emocional. Depois aumenta a amplitude: a perda é de cidades inteiras, reinados, continentes – para culminar na perda da pessoa amada.
Repare, leitor, que no último verso, a inserção quase imperceptível da palavra “tão” no meio do refrão – “a arte de perder não é difícil de aprender” se torna “não é tão difícil de aprender” – prepara o momento final, de impacto, que revela toda a insinceridade – ainda que mantendo, já sem convicção, a negação insincera – “embora pareça (Escreva!) um desastre”.
Neste momento em que a cultura nacional está sob ataque cerrado e violento, em todas as frentes, presto com esta crônica minha pequena homenagem ao cineasta brasileiro Bruno Barreto, que soube enquadrar e recriar, com excepcional sensibilidade, o lindo poema de Elizabeth Bishop.
Essa é, afinal, uma das grandes contribuições, entre tantas, que o cinema pode dar – abrir portas, de par em par, para as outras artes, a poesia, a literatura, a pintura, a música – torná-las conhecidas e amadas por quem talvez nem chegasse a encontrá-las um dia.
Richard Wagner falava, no século 19, da sua ópera dramática como Gesamtkunstwerk, como a “arte total”, que reuniria todas as artes.
Mas o século 20 mostraria que é o cinema, mais do que qualquer outra, a verdadeira arte total.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 20 de agosto de 2021.
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017 e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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