Por Kakay
“Einstein (e ele crê):
Deus não joga dados
com o mundo.
São dois casos:
Deus do caos fez o mundo
o Homem do mundo fez o caos.
Deus não joga
mas
O Homem joga
dados com Deus.”
– Leão de Formosa, Metafísica
O poder e a política surpreendem com muita facilidade e têm uma dinâmica rica e ágil. Como observador da cena política, gosto de acompanhar os movimentos do país.
Tenho escrito, há algum tempo, sobre a vital necessidade do impeachment deste presidente golpista, mas sempre atento às dificuldades, porque o processo de destituição é político-jurídico e de rara sensibilidade. Sempre fui contrário a que a votação do afastamento presidencial se desse sem o necessário apoio congressual, pois isso dividiria ainda mais o país já tristemente fragmentado e daria mais força a esse presidente irresponsável.
Nesta semana, nosso serial killer Bolsonaro ousou desafiar mais uma vez os Poderes constituídos. Dessa vez foi com ataques diretos e frontais ao Supremo Tribunal Federal, na pessoa do ministro Alexandre de Moraes. A bazófia de pregar o descumprimento das decisões da Suprema Corte significa a quebra definitiva do sistema democrático. O caos institucionalizado.
Desde muito, o presidente desafia os Poderes constituídos, afronta a democracia e a estabilidade ao propor o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal. É de uma bizarrice que poucos levam a sério. Mas, no último 6 de setembro, em que as tratativas de um golpe no Dia da Independência, 7 de setembro, ficaram mais explícitas, a democracia foi mais uma vez testada. É sempre bom ler o fantástico Agualusa, no poema “Herói até aos Dentes”:
“Claro que sorria
Nada sabia da Morte
Nem de como é frágil o corpo de um homem
Um tiro, um corte.
Qualquer coisa.
E dormem!…”
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1 – Com possibilidade de impeachment de Bolsonaro, Mourão e Lira ficam alertas
2 – Placar do impeachment: Mourão já faz planilha de deputados pro e contra Bolsonaro
Atentos ao tabuleiro de xadrez
É bom estarmos atentos ao tabuleiro de xadrez, pois as peças se deslocam nem sempre com uma lógica cartesiana. Os movimentos bruscos de um chefe do Executivo completamente ensandecido embaralham a estratégia de um Estado democrático de direito.
Ele repete, com incrível insensatez, o anúncio de um golpe que parece não ter força para dar. Anuncia o golpe, propaga extrema insegurança e estica a corda da estabilidade entre as instituições. Seria ridículo, não fosse ele o presidente da República em um sistema presidencialista. Ele é provinciano, vulgar e banal, mas, enquanto chefe do Executivo, é Comandante e chefe das Forças Armadas e possui enorme autoridade. Inclusive o poder que a elite econômica divide sobejamente com ele. E, desde que entregou o governo ao Centrão, o impeachment ficou mais distante.
Mas a visão fotográfica do que se passa nos permite mexer algumas peças imaginárias desse jogo.
O presidente Luiz Fux se houve muito bem no seu pronunciamento em 8 de setembro. Sentado na cadeira de presidente do Poder Judiciário, no sagrado Plenário do Supremo Tribunal, o ministro falou de forma direta, cristalina e inequívoca que o presidente da República cometeu crime de responsabilidade e caberia ao Congresso Nacional assumir a incumbência constitucionalmente atribuída.
Não poderia ter sido mais claro. E, também, não poderia ter ido além. Cumpriu rigorosamente, com coragem e ousadia constitucionais, o papel de chefe de um dos Poderes da República. Tivesse ficado aquém, teria capitulado; tivesse ido além, igualar-se-ia ao chefe do Executivo.
Moveu a dama no tabuleiro, mas o xeque-mate quem dá é o Congresso Nacional, investido pelo poder popular. Assim funciona a democracia. Como no poema “Outono”, de Rainer Maria Rilke:
“Todos caímos. Cai aquela mão.
E olha as outras: há quedas também.
No entanto há alguém
que, com suaves mãos,
Todas as quedas detém.”
O Poder Judiciário é inerte, só age se provocado. Daí a importância que tenho falado incessantemente, que é a urgente necessidade de tirar os poderes imperiais do presidente da Câmara e do procurador-geral da República. Teremos agora o relatório final da CPI da Covid, o qual, certamente, apontará inúmeros crimes de responsabilidade e comuns ao presidente.
Na atual conjuntura, o presidente da Câmara pode simplesmente não se manifestar sobre a necessidade da destituição por crime de responsabilidade. E o PGR pode arquivar qualquer proposta de crime comum. Cabe à CPI propor as mudanças legislativas e conferir a palavra final ao plenário da Câmara e a um colegiado de subprocuradores. Esses poderes imperiais são uma afronta ao sentido republicano e não combinam com a República.
E, no jogo do impeachment, houve uma série de movimentos se posicionando estrategicamente. Com a enorme popularidade do ex-presidente Lula, atestada em todas as pesquisas, e a vertiginosa queda do apoio a Bolsonaro, começa a se fortalecer a hipótese de uma “3ª via” vir a ser a “2ª via”, com Bolsonaro fora de um 2º turno. E o poder assanha os que vivem à sua volta. São vários os atores.
O vice-presidente Mourão seria o beneficiário direto do impeachment, visto que assumiria a presidência e comandaria um processo de volta à estabilidade democrática. Os partidos de direita e de centro começam a se mexer na cadeira, atentos à hipótese de serem a 2º via. Já discutem abertamente o apoio ao afastamento presidencial. Até o PSDB anuncia a descida do muro e uma tomada de posição, a ver.
O dono do tabuleiro, Arthur Lira, presidente da Câmara e detentor da chave que inicia o processo, acompanha, silenciosamente, o jogo no Tribunal Superior Eleitoral, que possui elementos de sobra para cassar a chapa Bolsonaro-Mourão. E aí, quem assumiria a Presidência seria o próprio Lira.
Enquanto o tabuleiro treme com todos esses movimentos, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, mineiramente, já tirou seu carro da frente do Palácio do Jaburu, moradia oficial do vice-presidente da República, e o estacionou nas cercanias do Palácio do Planalto à espera dos próximos movimentos. Brasília vive a política em sua plenitude. De tédio, não morremos aqui.
Mas a hora ainda é de muita tensão institucional. Os voos cegos e rasantes do presidente da República parecem anunciar que o cerco se fecha sobre o seu círculo mais próximo. As tramas não republicanas e criminosas estão vindo à tona. E o caminho natural é a responsabilização desses atores por tudo que fizeram. Daí os arroubos, as bravatas e as ameaças.
Resta a todos nós o acompanhamento e a participação, ainda que da plateia, do jogo que definirá que país sairá desse tabuleiro.
Enquanto quebrava as estruturas democráticas e assaltava o Brasil, com um triste desmantelamento da cultura, da educação, dos costumes, da saúde e de todas as conquistas humanistas, enfim, esse grupo tratou de armar a população, disseminar o ódio, militarizar o governo e prestigiar as polícias militares, ou seja, posicionou-se no jogo para eternizar.
Mas eles são primários e jogam damas, esquecendo que, nesse mesmo tabuleiro, as peças do xadrez podem ser movimentadas. Com estratégia e dentro da Constituição, está mais do que na hora de trabalhar pelo afastamento do presidente.
O xeque-mate não será o fim do jogo, pelo contrário, será o começo de um país que queremos de volta. Um Brasil digno e estável para recuperar a economia e enfrentar a fome de mais de 20 milhões de pessoas. Para que seja possível dar a 15 milhões de desempregados a dignidade do emprego. Um lugar onde a esperança e a alegria estejam de volta e que os sobressaltos sejam somente os que a própria vida nos impõe de tempos em tempos. Um país no qual ser alegre ou triste não dependa dos humores do governo. Queremos ter a vida simples como ela deve ser, e o Brasil de volta. Correr os riscos inerentes à vida, mas sem medo de ser feliz.
Rindo com o grande Mário Quintana, porque rir é essencial, no Poeminha do Contra:10