Lula ao Libération: “Bolsonaro não quer sair do poder, mas o povo vai decidir o contrário”

Atualizado em 6 de outubro de 2021 às 18:42
Veja o Lula
Lula ao Libération: “Bolsonaro não quer sair do poder, mas o povo vai decidir o contrário”. Foto: Reprodução

O jornal progressista francês Libération conversou com Lula um ano antes das eleições de 2022. O ex-presidente fala de Jair Bolsonaro e traça os contornos de uma volta ao poder da esquerda e do Partido dos Trabalhadores. A entrevista é de Chantal Rayes.

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Lula fala ao Libération

Ele teria renunciado à aposentadoria após sua libertação da prisão no final de 2019. E então Lula, o sobrevivente, o animal político, voltou. Em março, o chefe da esquerda brasileira recuperou sua elegibilidade da noite para o dia com a anulação pelo Supremo Tribunal Federal de suas condenações no contexto da vasta operação anticorrupção Lava Jato. Após dois mandatos à frente do país, entre 2003 e 2010, Luiz Inácio Lula da Silva está agora na melhor posição para vencer o presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro, no ano que vem.

É um Lula em boa forma, gravata vermelha e todo sorrisos, que recebeu o Libération no dia 30 de setembro no modesto local de sua formação, o Partido dos Trabalhadores. Sem dúvida nenhuma coincidência: o ex-metalúrgico está de volta ao berço, depois de parecer se distanciar de um PT menos popular que ele. Se uma vez ele mostrou sua pata branca para seduzir a comunidade empresarial, aqui está ele recuperando seu sotaque de esquerdista. Lula nos cochichou sobre sua “linda relação com a França” . Ele pega nossa mão, paternalmente. Já em campanha, usa e abusa de seu charme.

Libération — Você é candidato às eleições presidenciais do próximo ano?

Lula — Muitos pensam que estou brincando quando digo que ainda estou pensando. É difícil para eles imaginar que alguém que todas as pesquisas dão em mente ainda não declare sua candidatura [Lula vence com 25 pontos à frente de Jair Bolsonaro]. O que posso dizer é que estou bem disposto. A probabilidade de eu ser um candidato é, portanto, muito alta. Estamos discutindo isso dentro do PT, mas também com outros partidos e organizações da sociedade civil, para construirmos uma aliança para governar o Brasil a partir de 2023 [o mandato de Bolsonaro termina no final de 2022]. Provavelmente tomaremos uma decisão em janeiro ou fevereiro.

A eleição será realizada conforme planejado? Bolsonaro deixa margem para dúvidas…

Estou convencido da capacidade de nossas instituições em garantir seu desempenho. Bolsonaro perderá e deixará o poder, como deveria. Ele, então, sem dúvida, terá que responder perante os tribunais por seus atos arbitrários.

Mil dias após a chegada ao poder, como está a democracia no Brasil?

Muito bem, a julgar pelas aspirações dos brasileiros e pelo comportamento dos partidos políticos. O que está errado é o comportamento do chefe de Estado, que desrespeitou todas as regras civilizadas que a democracia brasileira estabeleceu, que sabota as missões de instituições que deveriam proteger o meio ambiente e os índios, para citar apenas esses exemplos. Isso sem falar na crise econômica e social, com 116 milhões de brasileiros [mais da metade da população] em situação de insegurança alimentar e 33 milhões de desempregados ou condenados ao subemprego.

A imagem do Brasil no exterior talvez seja o que mais sofre com a presidência do Bolsonaro…

Este é um dos projetos que aguardam seu sucessor. Historicamente, a diplomacia brasileira sempre foi muito respeitada. Mesmo sob a ditadura militar [1964-1985], as relações do Brasil com o resto do mundo eram modernas e civilizadas. Bolsonaro jogou tudo no lixo. Tendo olhos apenas para Trump, ele falou mal da China, Rússia, Argentina, Bolívia, Chile… Ele até ofendeu pessoalmente Brigitte Macron [ao comentar um post no Facebook que zombava do físico da primeira-dama]. Com ele, o Brasil se tornou um pária internacional. Ninguém quer receber ou ser recebido lá. No final de agosto, Bolsonaro trouxe o presidente da Guiné-Bissau [Umaro Sissoco Embaló, às vezes apelidado de “Bolsonaro da África”], só para dar as boas-vindas a Brasília (sorriso divertido).

Com 600.000 mortes registradas oficialmente em breve, o Brasil é duramente atingido pela Covid-19. Você chamou o Bolsonaro de “presidente genocida”. Isso não é inapropriado?

Pode parecer extremo, mas ele merece! Um dia ou outro, ele será julgado por um tribunal internacional, por todas as mortes que poderiam ter sido evitadas se ele tivesse agido corretamente. Ele preferiu negar a periculosidade do vírus, que segundo ele só mataria idosos e seria tratável com um medicamento de eficácia não comprovada [cloroquina]. Ele poderia ter feito um protocolo oficial para orientar cidades e estados [que acabaram tomando suas próprias medidas de saúde] e adquirir, em agosto de 2020, os 70 milhões de doses que o laboratório Pfizer lhe ofereceu. Nada disso foi feito. Agora sabemos que uma verdadeira gangue estava negociando vacinas dentro do Ministério da Saúde.

O Bolsa Família, seu programa de combate à pobreza extrema, foi alvo dessa nova direita que elegeu o Bolsonaro. No entanto, não só o Chefe de Estado o manteve, como está a preparar-se para aumentar em 56% o valor desta bolsa [30 euros pagos todos os meses aos mais carenciados] no âmbito da sua ofensiva ao seu eleitorado. O que isso te inspira?

Estabelecer o Bolsa Família não foi fácil. Fomos acusados de criar inúteis que não gostariam mais de trabalhar. As críticas cessaram com o reconhecimento internacional dessa política redistributiva, adotada desde então por muitos países pobres. E foi esse reconhecimento que fez com que Bolsonaro não ousasse tocá-lo. Para receber a bolsa, você tem que vacinar seus filhos e mantê-los na escola. Esta é a chave do seu sucesso. Eu criei o programa, agora o Chefe de Estado quer mudar o nome, na esperança de convencer as pessoas a votarem nele. Mas as pessoas são inteligentes, não se deixam guiar. Dito isso, o Bolsa Família seria uma medida de transição até que a miséria fosse erradicada. Sonho com o dia em que não precisaremos mais deles. Mas dado o curso das coisas, e não só no Brasil, acho que mais cedo ou mais tarde teremos que adotar uma renda universal para aqueles que a nova economia expulsou do mercado de trabalho.

Você passou 580 dias na prisão. Qual era seu estado de espírito quando foi à polícia em 7 de abril de 2018?

Para mim, ficou claro que o objetivo final do golpe contra Dilma [Rousseff, sua sucessora, deposta em 2016] era chegar até mim, mesmo que isso significasse inventar denúncias de corrupção . Por quê? Porque nossa elite da escravidão não digeriu a ascensão social dos mais desfavorecidos sob o governo do PT, entre 2003 e 2016. Desagradou profundamente a muitos brasileiros ricos ver a juventude da periferia ingressando na faculdade, ou a empregada doméstica pegando avião ou o operário da construção que frequenta as mesmas lojas que eles.

Eu poderia ter saído do Brasil, me refugiado em uma embaixada estrangeira. Preferi mostrar que Sergio Moro [o ex-juiz anticorrupção que o condenou e acaba de ser julgado “tendencioso” pelo STF] era um impostor. Eu disse a ele durante nosso primeiro encontro cara a cara: “Você está condenado a me condenar, porque a mentira foi longe demais. Você não pode voltar”. Moro e seus promotores visitaram as redações em busca de apoio da mídia. Em nove meses, TV Globo [primeiro canal em audiência] sozinha transmitiu 13 horas de tempo de antena contra mim! A imprensa raramente nos deu direito de resposta. Às vezes me pergunto se ela não estava presa. Então fiz o possível para não ceder ao ódio. A corrente de solidariedade de que beneficiei, em particular do meu apoio em França, deu-me forças.

É este o momento de colocar a questão da regulamentação da mídia de volta à mesa, como você está fazendo? A imprensa, um ator político no Brasil, agora está ajudando você ao se posicionar firmemente contra o Bolsonaro.

(Ele se levanta da cadeira) E decididamente contra Lula também. A mídia está procurando um candidato que possa evitar a minha vitória e a do Bolsonaro. A regulamentação da mídia, prerrogativa do Congresso Nacional, está prevista na Constituição brasileira. Que crime há em discutir isso? É uma reforma que já foi feita em outros lugares, mas que semeia o pânico, sabe Deus por que, entre os chefes da imprensa brasileira. Ouvi-los, regulamentar é censurar — uma mentira. A censura, a gente sabe uma coisa no PT, há tanto tempo que somos vítimas. (Endurece o tom) Mas a censura da elite brasileira não impediu meu partido de ganhar quatro eleições consecutivas, nem impedirá de vencer em 2022 se decidir ter candidato.

Desde a volta ao sufrágio universal em 1989, o senhor é o candidato natural do PT, sob cujo rótulo já disputou cinco eleições presidenciais. Onde está o sangue novo? Onde estão as primárias neste partido que tira proveito de sua democracia interna?

Por quantos anos François Mitterrand permaneceu a figura mais importante da esquerda francesa? O mesmo vale para Felipe González na Espanha. Um líder político não surge todos os dias. No entanto, o PT está em processo de reconstrução. O partido tinha outros presidentes além de mim, e dois outros candidatos presidenciais do Brasil: Dilma Rousseff [eleita em 2010] e Fernando Haddad [que disputou a votação de 2018 no lugar de Lula, então na prisão]. Também temos governadores muito bons. Tenho muito orgulho de quem sou no PT, da minha relação com o meu partido, uma relação de compreensão, respeito e camaradagem que nunca se perdeu, mesmo quando não fui candidato a nada ou estive detido. No dia em que o PT sentir que não tenho mais um papel a cumprir, ele vai colocar outro no meu lugar.

Você não decide essas coisas?

Não. Existem debates, instituições dentro do PT. Em última análise, são as pessoas que decidem. No dia que eu passar, ele vai me dizer: “Lula, vá embora”, e eu irei.

Qual é o seu programa para um possível terceiro mandato?

Você sabe, eu não tenho que ser presidente de novo. Eu já estive. E por isso mesmo, minha responsabilidade é infinitamente maior do que a de outros candidatos que nunca governaram. Tenho a obrigação de fazer muito mais e muito melhor do que já fiz. Vou fazer 76 no final do mês. Mas sinto a energia de um homem de 30 anos. Aprendi com minha mãe a nunca desistir e que a única luta que você perde é aquela que não luta. Hoje, o Brasil precisa mais do que nunca de um partido como o PT e de alguém que tenha sensibilidade social e conheça a alma dessa gente como eu conheço.

Será possível fazer mais?

É uma questão de necessidade, porque as pessoas estão mais pobres hoje do que quando eu estava no poder. Eu vi na época: os pobres não são o problema, mas a solução. Assim que eles começam a ter algum dinheiro, eles consomem e isso faz a economia girar. Em 13 anos, aumentamos o salário mínimo em 74%, sem contar a inflação, e aumentamos a renda dos 10% mais pobres muito mais do que a dos mais ricos. Isso nos permitiu expandir o mercado consumidor e atrair investimentos estrangeiros, para os quais o Brasil se tornara um dos primeiros destinos. Na verdade, minha fórmula é bastante simples: é colocar os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda.

A sua esquerda o reprova por não ter formado cidadãos, mas simples consumidores, que aliás acabaram elegendo o Bolsonaro…

Um presidente não tem esse poder. Eu criei as condições necessárias para que todos os brasileiros possam fazer três refeições por dia, ter acesso ao ensino superior e manter a cabeça erguida. Além disso, sou o presidente que abriu o maior número de universidades. A formação dos cidadãos depende de instituições, escolas, partidos políticos, sindicatos, que devem incutir uma consciência de classe. Não é feito por decreto.

No entanto, alguns debates poderiam ter sido iniciados. Muitos de seus constituintes pensam, por exemplo, como Bolsonaro, que um “bandido bom é um bandido morto”, o que alimenta a violência policial já extrema em bairros pobres.

O problema da violência policial estava no cerne da política de segurança pública cidadã que meu último ministro da Justiça, Tarso Genro, havia estabelecido para os bairros. Mas por algum motivo que me escapa, Dilma não seguiu essa política. A polícia entra nas favelas para matar. É por isso que quero discutir seu papel na campanha do próximo ano. Acontece que o aparato policial está sob a alçada dos Estados federados que mantêm suas prerrogativas … Uma coisa é certa: Bolsonaro não resolveu o problema da violência que ele tinha brandido como slogan.

Se houver uma eleição, se você for um candidato e se vencer, alguns temem que os militares não permitam que você volte ao poder. E você?

(Risos) Ouvi dizer que em 1989 [quando ele concorreu pela primeira vez], 1994, 1998 e 2002, quando finalmente fui eleito. Eu não tenho preocupações. As Forças Armadas nunca foram mais respeitadas do que sob meu mandato. Essas pessoas que estão no governo com o Bolsonaro [os soldados que têm pastas e ocupam cargos na administração] não os representam.

Os militares estão no poder hoje e não têm intenção de deixá-lo. Como você planeja levá-los de volta ao quartel?

O primeiro soldado a não querer sair do poder é o próprio Bolsonaro! (risos) Mas as pessoas decidirão o contrário. O próximo presidente não precisará de tantos soldados em seu governo. Nossa sociedade civil treinou executivos suficientes para nos ajudar a governar. A missão das Forças Armadas não é ocupar cargos reservados a civis. Tenho a certeza de que saberão cumpri-lo com o mesmo respeito com que sempre os demonstrámos.