Aplicando todo o receituário da extrema direita mundial, Eric Zemmour já aparece no lugar de Marine Le Pen como um dos favoritos dos franceses para 2022.
A imprensa francesa o classifica de “polemista”. Jornalista, 63 anos, condenado três vezes por incitação à discriminação racial ou religiosa, defende a família tradicional, execra a comunidade LGBT e, em 2019, teve de comparecer à justiça por negar os crimes cometidos pelo nazismo.
Eric Zemmour ainda não se declarou oficialmente candidato à presidência. No entanto, suas viagens pelo país usam o livro que acabou de lançar como comícios disfarçados.
Na última quarta-feira (6), ele chegou pela primeira vez nas pesquisas de intenção de voto em segundo lugar, com 17%, atrás de Emmanuel Macron (24%), candidato à reeleição, e à frente daquela que era dada pelas pesquisas como favorita para enfrentar o presidente francês no segundo turno.
Seria ele o “Bolsonaro francês”? Se uma das figuras mais medíocres da política francesa, o deputado de extrema direita Nicolas Dupont-Aignan, manifestou pela visita que fez a Jair Bolsonaro e família uma adesão clara, Zemmour também é um apoiador do genocida brasileiro.
Mas como pré-candidato sem partido, preferiu ir a Budapeste encontrar o presidente de extrema direita que está transformando a Hungria numa ditadora, Viktor Orbán.
Ele certamente acredita que o presidente húngaro lhe renderá mais votos do que o brasileiro, ainda que pareça em inúmeros aspectos com o derradeiro.
Mídia e Eric Zemmour
Em sua coluna no conservador Le Figaro, Eric Zemmour celebrou em 2018 a vitória de Bolsonaro, a quem chamou de “irmãozinho de Trump na América do Sul”.
Na época, Zemmour apresentava uma série de paralelos entre o Brasil e a França. Ao falar bem de Bolsonaro, ele sugeria que a França fizesse uma escolha semelhante, o que três anos depois corresponderia a ele mesmo.
“O Brasil tem como lema nacional ‘Ordem e Progresso’, uma fórmula do pensador positivista Auguste Comte”. Na mesma época, um outro pensador francês, Charles Péguy, escrevia: ‘A ordem, e apenas a ordem, faz definitivamente a liberdade; a desordem faz a servidão”, citava.
“As recentes eleições brasileiras corroboraram esses dois grandes intelectuais franceses do século XIX. O Brasil votou massivamente contra a insegurança, a violência, a desordem”, defendia.
“A mídia francesa de esquerda (fórmula amplamente pleonástica!) nos alertou há semanas sobre os perigos do ‘candidato de extrema direita’. Jair Bolsonaro era primeiramente – e somente – um ex-capitão do exército, nostálgico da ditadura militar que dominara o Brasil entre 1964 e 1985”, lembra.
Segue o receituário ultraconservador mundial à risca, no qual a mídia faz parte de um complô comunista e as lideranças de extrema direita são os cruzados heróis.
Segue o receituário fazendo uso escancarado da mentira. Afinal, se o termo “mídia francesa de esquerda” é segundo Eric Zemmour um pleonasmo, então o que faz ele com sua coluna fixa no conservador Le Figaro?
Inicialmente escritor de tiragem modesta de biografias de personalidades políticas, foi na televisão pública France 2 que se tornou conhecido em meados dos anos 2000, num programa de debates em que encarnava uma visão polêmica, conservadora, servindo de “contraponto” a um colega de bancada, de esquerda.
Mas foi nas empresas privadas de comunicação que se consolidou como figura “polemista”, tornando-se comentarista fixo de programas de debate do canal CNews, propriedade do milionário das comunicações Vincent Bolloré.
Nesse ponto, a semelhança com o bolsonarismo e o trumpismo, ou com o fascismo de uma maneira global, é a fabricação midiática.
Se a mídia brasileira serviu de amplo canal de vozes reacionárias, seja por meio de seus programas policiais, seja na sua linha editorial no processo de “fascistização” da sociedade durante o golpe de 2016, Eric Zemmour encarna um processo análogo na França.
Instrumentalizando e agitando o fantasma da violência, o “perigo” do feminismo e a ameaça que as pautas LGBTI representam à noção de família tradicional (patriarcal, heterossexual, cristã), Zemmour consolidou uma visão reacionária em parte da sociedade francesa, a serviço do capital.
Recentemente, o Conselho Superior Audiovisual do país, um órgão regulador da mídia, determinou que todos os veículos midiáticos contassem o tempo de palavra do apresentador. Resultado: o canal CNews suspendeu o programa de Zemmour, “Face à l’info”.
Após a decisão, ele defendeu a privatização da comunicação audiovisual do país.
Como a Record ou o SBT de Bolsonaro, é na comunicação privada que se encontram os maiores aliados de Zemmour. Uma mão lava a outra, com dinheiro público.
Ditadura e Eric Zemmour
O gosto ditatorial também une Zemmour a Bolsonaro.
“Nossos caros jornalistas esqueciam apenas que a ditadura militar na América do Sul era o contraponto – apoiado pelos Estados Unidos – à onda comunista, encorajada por Cuba e URSS”, dizia o “polemista”, em seu artigo de 2018.
Para Zemmour, uma ditadura não é problemática em si, desde que haja ganhos econômicos (ele só não diz para quem).
Repetindo uma vez mais o receituário mundial da extrema direita, o fantasma venezuelano: “(os jornalistas franceses esquecem que) a única ditadura na região é a Venezuela e é de esquerda, ou para retomar a terminologia midiática, de ‘extrema esquerda’. Ditadura que se acompanha de ruína. Pelo menos a ditadura de direita, no Chile, no Brasil ou na Argentina, havia permitido uma certa melhora econômica”.
O antilulismo, antipetismo e antiesquerdismo seguem a mesma linha, propagando a mentira.
“Quando não é a ditadura, é a corrupção que gangrega a esquerda: o Brasil tem um ex-presidente, Lula, na prisão, e a que o sucedeu, Dilma Rousseff, destituída pela justiça, também por corrupção!”
Dois anos depois da destituição, havia recuo suficiente para fazer afirmações sobre o impeachment de Dilma Rousseff, que não foi destituída nem pela justiça e tampouco por corrupção.
Já que não foi corrigido, mentiu com o aval do jornal.
Falso populismo
Como Bolsonaro e Trump, Zemmour defende um projeto de elite falando em nome do “povo”.
“Jair Bolsonaro é o irmãozinho sul-americano de Donald Trump. Suas declarações sobre as mulheres, os gays, os negros escandalizaram a mídia. Como para Trump, elas não desencorajaram as classes populares de votar nele. As classes populares debocham aguerridamente do vapor moralizador dos intelectuais; elas demonstram sua capacidade em afrontar e resistir à bronca midiática”, disse ainda em sua coluna bolsonarista.
“Esse voto, depois do de Trump, mas também em Orbán na Hungria, ou Putin na Rússia, prova que as classes populares se rebelam contra a ditadura das minorias, sejam elas sexuais ou étnicas”.
A matriz judaico-cristã defendida pelo governo Bolsonaro em detrimento de outras religioes é mais uma semelhança com Zemmour, que instrumentaliza sua condição de judeu para se distinguir de outras figuras da extrema direita, como Jean-Marie Le Pen, já muito descredibilizado por seu antisemitismo, para “revisar” a história do nazismo.
No artigo que escreveu para louvar a vitória de Bolsonaro, ele se permitiu criticar o catolicismo por sua proximidade com intelectuais progressistas.
Convergiu com a ascensão evangélica, fenômeno que também existe na França, ainda que em escala muito menor.
“Enquanto a esquerda e a Igreja católica se submetiam a esses novos tiranos bons pensadores (o que se pode entender como referência ao ‘politicamente correto’), as igrejas evangélicas apertaram no alarme e juntaram os pobres. E por trás, o candidato Bolsonaro”, avaliou.
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Violência
Defensor da economia liberal da década dos Fernandos, Zemmour afirmou:
“No final do século XX, o Brasil passava por um modelo de bons feitos da globalização e do multiculturalismo. Era dado como um exemplo à França. Vinte anos depois, o modelo murchou: o crescimento amoleceu, a violência cresceu ainda mais”.
A história seria implacável com Zemmour apenas três anos depois de sua coluna: sob Bolsonaro, ou o modelo que quer implantar na França, o Brasil atingiria níveis de inflação e miséria históricos para as últimas décadas.
Como seu tirano brasileiro, Zemmour apresenta as “minorias” como fonte dos males sociais, como origem da violência na sociedade.
“O liberalismo multicultural é o regime da guerra de todos contra todos. Os brasileiros escolheram a sobrevivência”, disse. A história desmentiria a conclusão de seu artigo três anos depois, com mais de 600 mil brasileiros mortos de coronavírus.
A maioria poderia ter sido salva se a vacina fosse comprada a tempo e se as medidas sanitárias não tivessem sido sabotadas.
Como Bolsonaro, Zemmour é um homem que não fala, vomita. Vomita barbárie. Sua primeira condenação na justiça foi por dizer que as empresas tinham direito de não empregar árabes e negros.
“Por que são revistados 17 vezes? Por quê? Porque a maioria dos traficantes são negros e árabes, é assim, é um fato”, disse num canal de TV a cabo, declarações que lhe custariam uma multa de alguns milhares de euros.
Também a televisão que lhe empregava foi multada recentemente, em 200 mil euros. Em um de seus programas, Zemmour atacou menores estrangeiros separados de suas famílias em meio às migrações: “Eles não têm nada o que fazer aqui, são ladrões, assassinos, estupradores, é tudo que eles são! É preciso expulsá-los”.
Durante o programa, ninguém reagiu. A apresentadora Christine Kelly nada disse. Não são apenas derrotas na justiça que coleciona.
Em fevereiro deste ano, julgado por “contestação de crime contra a humanidade”, Zemmour foi inocentado. Ele havia afirmado que o governo do regime de Vichy, do Marechal Pétain, colaborador nazista na França, “salvou” os judeus.
“Eu insisto em repetir o que disse, os dados falam por si: na França, 40% dos judeus estrangeiros que foram exterminados e 90% dos judeus franceses que sobreviveram”, disse em meio ao julgamento.
“O regime de Vichy havia protegido os judeus franceses e dado os judeus estrangeiros”, repetiu em setembro.
Adepto da teoria da grande substituição, segundo a qual a imigração muçulmana em massa vai substituir a civilização franco-europeia, seu projeto de governo prevê proibir nomear um filho de “Mohamed”.
A solução final de Bolsonaro e a de Zemmour não são estranhas entre si. Se para um, “que as minorias se adaptem ou desapareçam”, para o outro, não há opção.
Em 2019, Eric Zemmour defendeu uma figura emblemática do colonialismo francês. “Quando o general Bugeaud chega na Argélia, ele começa a massacrar os muçulmanos e até certos judeus. Hoje, estou do lado do general Bugeaud. É isso ser francês!”