Publicado originalmente no Guardian.
POR DAVID GRAEBER
Os capitalistas propagam a prosperidade somente quando ameaçados pela rivalidade mundial, pelos movimentos radicais e pelo risco de rebeliões locais.
Na década de 1990 eu costumava discutir com amigos russos a respeito do capitalismo. Este período era aquele em que muitos dos jovens intelectuais do Leste europeu se mostravam vívidos para abraçar qualquer coisa associada com este sistema econômico em particular, ainda que as massas proletárias de seus países continuassem profundamente desconfiadas.
Sempre que eu trazia alguns excessos criminosos cometidos pelas oligarquias e por políticos corruptos que estavam privatizando tudo a favor de si próprios, eles simplesmente davam de ombros.
Lembro de um russo, com seus 20 e poucos anos, explicando para mim: “Se olharmos para os Estados Unidos, havia todos os tipos de fraude como os do século XIX das estradas de ferro, e esse e aquele outro. Ainda estamos no estágio selvagem. Sempre leva uma geração ou duas para o capitalismo se civilizar”.
“E você realmente pensa que o capitalismo irá fazer isso por isso só?”, eu perguntava. “Olhe na história! Nos Estados Unidos há os barões usurpadores, depois – 50 anos mais tarde – houve o New Deal. Na Europa, temos o Estado de bem-estar social…”, dizia ele.
“Mas, Sergei”, protestei (na verdade, não lembro o seu nome real), “isso não aconteceu porque os capitalistas apenas decidiram serem bonzinhos. Isso aconteceu porque eles estavam todos com medo de vocês”.
Ele parecia chocado pela minha ingenuidade.
Naquela época havia uma série de pressupostos que todos precisavam aceitar para se estar, até mesmo, permitido a entrar num debate público sério. Estes eram apresentados como uma série de equações evidentes.
“O mercado” era equivalente a capitalismo. Capitalismo significava riqueza exorbitante no topo, mas também progresso tecnológico rápido e crescimento econômico. Crescimento significava prosperidade cada vez maior e a ascensão de uma classe média. Por sua vez, o aumento de uma classe média próspera iria sempre, em última instância, se equivaler à governança democrática estável. Uma geração depois, aprendemos que nenhum desses pressupostos pode ser pode ser mais considerado correto.
A importância real do best-seller de Thomas Piketty – “O capital no século XXI” – é que ele demonstra, nos mínimos detalhes (e isso continua sendo verdadeiro, apesar de algumas brigas mesquinhas previsíveis), que, no caso ao menos de uma equação de base, os números simplesmente não se somam. O capitalismo não contém uma tendência inerente a se civilizar. Deixado à própria sorte, pode-se esperar que ele crie taxas de retorno sobre o investimento muito maiores do que todas as taxas de crescimento econômico de forma que o único resultado possível seja a transferência – mais e mais – da riqueza para as mãos de uma elite hereditária de investidores, ao lado do empobrecimento dos demais.
Noutras palavras, o que aconteceu na Europa ocidental e na América do Norte entre aproximadamente 1917 e 1975 – quando o capitalismo criou, de fato, um crescimento alto e uma desigualdade menor – foi algo como uma anomalia histórica. Há uma percepção crescente entre os historiadores da economia de que este foi, de fato, o caso. Há muitas teorias que buscam explicar o fenômeno.
Adair Turner, ex-presidente da Autoridade de Serviços Financeiros [do Reino Unido], propõe ser a natureza particular da tecnologia industrial de meados do século o fator que permitiu tanto as altas taxas de crescimento quanto um movimento sindical de massas. O próprio Piketty aponta para a destruição do capital durante as guerras bem como às altas taxas de impostos e regulação que a mobilização com vistas à guerra permitiu. Outros têm explicações diferentes.
Sem dúvida, muitos fatores estiveram envolvidos, mas praticamente todos parecem estar ignorando o mais óbvio. O período em que o capitalismo pareceu capaz de garantir uma prosperidade ampla foi também, precisamente, o período no qual os capitalistas se viram como sendo não os únicos atores em jogo: foi quando eles enfrentaram um rival mundial no bloco soviético, os movimentos revolucionários anticapitalistas do Uruguai à China e, pelo menos, a possibilidade de rebeliões por parte dos trabalhadores locais.
Noutras palavras, em vez de altas taxas de crescimento que permitissem uma riqueza maior para os capitalistas distribuíssem aos demais, foi o fato de eles sentirem a necessidade de trazer para junto de si pelo menos uma parcela das classes trabalhadoras o que colocou mais dinheiro nas mãos das pessoas comuns, criando demandas cada vez maiores de consumidores – o que foi em si o grande responsável pelas taxas notáveis de crescimento econômico que marcaram a “idade de ouro” do capitalismo.
Desde a década de 1970, na medida em que as ameaças políticas significativas diminuíram, as coisas voltaram ao seu estado normal: ou seja, a desigualdades selvagens, com os míseros 1% presidindo uma ordem social marcada por uma crescente estagnação social, econômica e mesmo tecnológica. Foi precisamente o fato de que as pessoas, tais como o meu amigo russo, acreditaram que o capitalismo iria, inevitavelmente, se civilizar o que lhe garantiu não mais precisar assim fazer.
Em contrapartida, Piketty começa seu livro denunciando a “retórica preguiçosa do anticapitalismo”. Ele não tem nada contra o capitalismo em si – ou mesmo contra a desigualdade, que seja. Ele apenas deseja fornecer uma comprovação a respeito da tendência do capitalismo em criar uma classe inútil de rentistas parasitas. Por conseguinte, argumenta que a esquerda deveria se focar em eleger governos dedicados a criar mecanismos internacionais para taxar e regular as riquezas concentradas. Algumas de suas sugestões – um imposto de renda de 80%! – podem parecer radicais, mas ainda estamos falando de um homem que, tendo demonstrado ser o capitalismo um gigantesco aspirador sugando a riqueza para as mãos de uma minúscula elite, insiste para que não desliguemos simplesmente a máquina, mas que tentemos construir um aspirador sensivelmente menor na direção oposta.
Além disso, ele não parece entender que não importa quantos livros possa vender ou quantas reuniões possa ter com representantes ou membros financeiros da elite política: o simples fato de que um intelectual francês de tendência esquerdista em 2014 pode, seguramente, declarar não querer derrubar o sistema capitalista, mas simplesmente salvá-lo de si próprio, é o motivo pelo qual tais reformas jamais acontecerão. Os que compõem aquele 1% [dos mais ricos] não estão prestes a se expropriar, mesmo se se pedirem a eles com todo o respeito. Ademais, estes têm passado os últimos 30 anos criando um bloqueio na mídia e na política para se assegurarem de que ninguém assim o fará por meios eleitorais.
Dado que ninguém em sã consciência irá desejar receber algo como a União Soviética, também não vamos ver nada parecido com a democracia social de meados do século criado para combatê-la. Se quisermos uma alternativa à estagnação, ao empobrecimento e à devastação ecológica, vamos precisar encontrar uma forma de desligar a máquina e começar de novo.