A entrevista abaixo foi publicada pelo site Planeta Sustentável.
Os urbanistas são unânimes em dizer que quanto mais espaços se criam para os carros, mais carros aparecem para ocupá-los. Essa constatação é facilmente percebida em cidades brasileiras como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, onde as taxas de motorização são altas e o tempo médio gasto para ir da casa ao trabalho é 31% maior que em Xangai, Nova York Tóquio e Paris, segundo dados levantados pelo Ipea. E os estacionamentos, em particular, ocupam espaços valiosos das cidades e suas vias, afetando de forma negativa o planejamento urbano.
Uma pesquisa da EY Consultoria, realizada para quantificar as vagas em 15 distritos do centro expandido da capital paulista, mostra que existe lugar para apenas 384 mil carros dos 509 mil que vão para a região diariamente (leia reportagem Cadê as vagas, da revista Veja SP). Ou seja, 125 mil motoristas não conseguem vagas, passando mais tempo no trânsito procurando por elas. Os estacionamentos deixaram de ser cômodos para se tornar mais um catalisador dos problemas da mobilidade urbana em um cenário que se repete na maioria das capitais brasileiras: excesso de veículos nas ruas, congestionamentos, índices perigosos de poluição do ar e horas perdidas no trânsito atrás de uma vaga.
“Quanto mais estacionamentos se criam, mais se prioriza o uso do carro particular nas grandes cidades, que já possuem grande parte de suas áreas projetadas para seu uso e ainda assim sofrem com congestionamentos. Os estacionamentos condicionam comportamentos e escolhas nas cidades, uma vez que todos que dirigem escolhem o carro como meio de transporte pensando em estacionar”, explica o urbanista americano Michael Kodransky, especialista no tema e gerente global de pesquisa do Institute for Transportation and Development Policy (ITDP), organização sem fins lucrativos com sede em Nova York que promove projetos e ideias sustentáveis de mobilidade urbana em diversos países, incluindo o Brasil.
Entre os conselheiros do ITDP estão planejadores e urbanistas visionários como o ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, que conseguiu reinventar a antes caótica cidade colombiana do ponto de vista da mobilidade ao priorizar ciclovias e o investimento no transporte público de massa, como o Bus Rapid Transit (BRT).
No Rio de Janeiro, onde o ITDP mantém escritório, Kodransky está coordenando pesquisa inédita junto à prefeitura carioca sobre o uso de vagas no centro da cidade. Os dados colhidos serão importantes para a introdução de um novo projeto de estacionamentos, no segundo semestre de 2014, inspirado nos bem sucedidos Ecoparq da Cidade do México e no SF Park de São Francisco, EUA, que utilizam parquímetros inteligentes para fazer cobrança variável das vagas com base na demanda de certas regiões nos horários de pico.
Na capital mexicana, os resultados positivos do Ecoparq são indiscutíveis, a cidade conseguiu acabar com a ação dos “flanelinhas” e aumentar a rotatividade das vagas, tornando mais eficaz a necessidade de estacionamento no bairro central de Polanco. O tempo gasto (homens-hora) na busca por estacionamento na região caiu de 8,2 milhões de horas por ano para 1,9 milhão, enquanto o gasto de gasolina durante a procura caiu de 9,9 milhões de litros para 2,2 milhões de litros. Por consequência, a cidade conseguiu reduzir em 18 mil toneladas a quantidade de CO2 gerado pelos carros.
Michael Kodransky concedeu uma entrevista para o Planeta Sustentável. Nela, explica o impacto dos estacionamentos como paradigma não apenas na mobilidade e na densidade urbanas, mas no planejamento e na qualidade de vida das cidades.
Quando os estacionamentos para carros se tornaram um problema para a mobilidade urbana?
Os primeiros estacionamentos surgiram nas décadas de 1920 e 1930, quando o número de motoristas começava a aumentar em escala global e os carros passaram a ocupar um tamanho precioso do espaço público – o espaço entre as casas e prédios, assim como espaço por onde as pessoas antes caminhavam e passavam o tempo livre.
Essa imposição do carro no domínio público atrapalhava a segurança e a vitalidade das cidades. Por isso, criaram-se estacionamentos para todo tipo de empreendimento imobiliário e destino que se possa imaginar. Desde então, cada viagem começa e termina em algum estacionamento, seja no trabalho, na escola, no hospital ou no shopping center.
O problema é que, em geral, todos os que dirigem planejam suas viagens pensando na sua necessidade de estacionar, de preferência próximos ao seu destino, intensificando o tráfego local na busca por uma vaga. Com o tempo, quando as cidades atingiram seus picos de motorização, as pessoas passaram, e ainda passam, a gastar grande parte de seu tempo e dinheiro atrás de vagas, aumentando os efeitos negativos do excesso de carros nas ruas, como congestionamentos e a poluição do ar. Os estacionamentos deixaram ser uma boa ideia para se tornarem mais um desafio para a mobilidade urbana sustentável.
Qual é o impacto dos espaços reservados para estacionamento nas grandes cidades?
Os estacionamentos podem ser projetados para que não sejam vistos, embora os problemas que causam persistam nas ruas. Os estacionamentos se originam nos espaços privados, mas impactam o domínio público no final da linha, enquanto todos tentam se espremer atrás de vagas nas vias, que tem uma capacidade limitada. Nas megacidades globais, o impacto é ainda maior, pois se passa muito mais tempo procurando onde estacionar. E você pode não ver os carros nos estacionamentos, mas eles continuam ocupando espaços cada vez maiores e moldando a cidade de maneira pouco democrática. Quando você junta uma ao lado da outra todas as vagas para estacionar que existem, percebe claramente que isso culmina em muito espaço apenas para os carros, erradicando a possibilidade de uma cidade mais densa, com os lugares mais próximos uns dos outros, onde se pode caminhar ou andar de bicicleta até os destinos.
Como o planejamento urbano pode mudar o uso desses espaços destinados ao estacionamento para algo mais eficiente?
Em geral, as pessoas dizem “nós não temos sistemas de transporte público eficientes, então precisamos de estacionamentos”, mas é aí que o planejamento entra de maneira decisiva. Não se pode mais planejar apenas com uma perspectiva em mente, no caso, a do uso do carro. O planejamento urbano deve ser feito com um pacote de ferramentas e estratégias dentro de uma visão mais abrangente, que inclua os pedestres, os ciclistas e a integração com os diferentes modos de transporte, de modo que o espaço da cidade seja mais bem aproveitado.
Mais importante é que se planeje pensando no uso misto e na densidade da cidade, sem separar os diferentes usos do espaço, como acontece em Brasília, onde cada área é dividida com uma finalidade, seja de viver, comprar, estudar ou trabalhar. Dessa maneira, você impõe o uso do carro para diferentes finalidades. E muitos dos estacionamentos são planejados com base em ideias ultrapassadas como essa.
No Brasil, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, um dos problemas são as entradas dos prédios, comerciais ou residenciais, que se tornam cada vez mais afastadas das calçadas e ruas. Essas entradas, assim como os estacionamentos, também não possuem usos ativos e prejudicam a atração e o desejo de caminhar. Se você tem uma maior transparência entre os espaços privados e públicos, permitindo essa comunicação entre a rua e os prédios, se cria um desejo maior de andar.
Em bairros como o Leblon, no Rio, e Vila Madalena, em São Paulo, vemos que isso já acontece assim. Não é à toa, portanto, que possuam os metros quadrados mais caros, quando comparados com outros bairros como Barra da Tijuca, ao norte do Rio de Janeiro. É simples: as pessoas gostam de andar por lá e passam mais tempo na rua. O exemplo da Times Square, em Nova York, é claro nesse sentido. Quando limitaram o acesso dos veículos e investiram em espaços paras as pessoas sentarem e conversarem, o consumo e a qualidade de vida aumentaram, revitalizando uma região da cidade que estava quase condenada pelo abandono dos negócios e das pessoas anos antes.
Quais as vantagens do Ecoparq, projeto desenvolvido na Cidade do México, sendo copiado agora no Rio de Janeiro?
Para começar, a cidade do México também sofria com o problema dos “flanelinhas”, chamados por lá de “franeleros”, que traziam outros problemas sociais à mobilidade por conta da informalidade e o elemento infeliz de extorsão que está inserido na sua prática.
O Ecoparq formalizou o sistema de estacionamento e introduziu um esquema de gerenciamento dos parquímetros que aceitam diversos meios de pagamento, além de funcionarem com energia solar. Isso trouxe flexibilidade para os motoristas de carros e economia para a cidade, estimulando o uso de outros modais por quem vai para certas regiões apenas para trabalhar e uma maior rotatividade das vagas para quem está de passagem por conta do limite de tempo para estacionar, que é de no máximo três horas.
Outro ponto importante do projeto é que o dinheiro gasto para estacionar é investido de volta na cidade em políticas públicas de mobilidade urbana e planejamento. O custo de estacionar vira um ganho para a cidade também. É importante mudar a mentalidade das pessoas de que estacionar não tem um custo para a cidade e de que aquilo é direito seu e deve ser gratuito.
Afinal, a solução para a mobilidade urbana é política ou de infraestrutura?
Se você olhar para São Paulo, vai ver que o trânsito já está saturado e os estacionamentos cada vez mais caros. Exatamente como aconteceu em Nova York na década de 1970, quando tratados governamentais para reduzir as quantidades de material particulado no ar foram aprovados. Naquela época, cidades como Nova York e Boston perceberam então que grande parte da qualidade local do ar estava ligada aos automóveis. Toda cidade pode decidir que tipo de cidade quer ser para oferecer qualidade de vida aos seus habitantes, porque agora as pessoas moram nas cidades não apenas por necessidade, mas por vontade própria. Elas se deram conta de que as cidades podem ser mais do que espaços apenas para trabalhar ou morar, mas também para aproveitar e ter experiências. E, pelo que pude constatar viajando pelo mundo, os espaços destinados para estacionamentos distorcem e impactam essas experiências sem que as pessoas se deem conta.
No Brasil, o que você pode ver nas suas pesquisas como bons projetos para mobilidade urbana?
No Rio de Janeiro, onde estive recentemente, há muitos bons projetos em andamento. Um deles é a implementação do Bus Rapid Transit e a possibilidade que ele oferece de integração com outros modais, como metrô, e as ciclovias. Integração é algo importante porque permite à pessoa escolher a opção que mais lhe interessa, seja a mais rápida, a mais barata ou a mais confortável.
Também pude acompanhar discussões sobre a necessidade de moradias mais acessíveis e próximas dos centros das cidades, pois as pessoas mais pobres continuam longe deles e, consequentemente, dos seus trabalhos. Os mais pobres arcam quase que exclusivamente com o ônus do caos na mobilidade urbana ao levar de 3 a 4 horas para voltar pra casa.
Esses debates que incluem a questão da moradia e seus efeitos no trânsito são de extrema relevância no que tange pensar a densidade de uma cidade. Nesse sentido, o Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, pode ser um alicerce também para solucionar parte dos congestionamentos. Mas é importante que transporte público de massa seja oferecido na cidade, pois sem isso não há densidade. E critérios para um bom design urbano, bonito e atraente, devem ser estabelecidos para que as pessoas saiam mais de casa e andem com conforto pelas ruas.