Transições no Chile. Por Jeferson Miola

Atualizado em 14 de novembro de 2021 às 16:15
Chile
(Foto; Twitter @danieljadue)

Por Jeferson Miola

“Mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor”. Último discurso de Salvador Allende no Palácio de la Moneda, 11 de setembro de 1973.

Como palco de processos políticos, sociais e institucionais bastante originais, o Chile aporta referências fundamentais para as lutas e resistências antineoliberais no nosso hemisfério.

Como escreveu Emir Sader, “o Chile retoma seu caráter de laboratório de experiências políticas na América Latina”; afigura-se como referência contra-hegemônica para a construção de alternativas anti-neoliberais.

A nova Constituição do país está sendo escrita no marco de uma Assembleia Constituinte exclusiva, eleita com paridade de gênero, com representação dos povos indígenas e maioria de 2/3 composta por representantes e lideranças do campo democrático-popular. O prazo para concluir seus trabalhos é outubro de 2022.

Em paralelo à Constituinte se desenrola a eleição presidencial. O 1º turno será no próximo 21 de novembro e o 2º em 19 de dezembro.

E, em meio à Constituinte e à eleição, os deputados do país aprovaram a abertura de processo de impeachment do presidente Sebastián Piñera que, todavia, tem reduzidas chances de ser aprovado pelo Senado controlado por uma maioria governista.

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A dinâmica política e social em curso; cujos desdobramentos, ainda que muito promissores, são incertos; abre caminho para a possibilidade de o Chile iniciar duas transições:

[i]. a transição da institucionalidade pinochetista-autoritária ainda vigente desde o fim formal da ditadura sanguinária para um arcabouço legal republicano-democrático, de direitos sociais e democracia participativa; e

[ii]. a transição do ultraliberalismo imposto pioneiramente no Chile por Washington durante a ditatura Pinochet para um Estado fortalecido, plurinacional, desmercantilizado, provedor de educação e saúde públicas, com justiça social e assentado no “buen vivir”.

As revoltas estudantis que sacudiram o país em meados da primeira década deste século em diante foram, em grande medida, o prenúncio da recomposição política que o país vive hoje.

As lideranças juvenis e estudantis forjadas no contexto daquelas revoltas hoje estão no centro da luta de classes no país, como é o caso de Gabriel Boric, candidato presidencial pelo agrupamento Frente Ampla – espaço plural que aglutina distintas organizações, representações e movimentos da esquerda chilena.

Nem mesmo os protagonistas diretos daqueles acontecimentos tinham consciência acerca do impulso que estavam dando para a dinâmica vigorosa que viria a acontecer num futuro que se mostrou mais perto que distante.

Houve não só uma renovação geracional, mas também uma revolução política e organizativa da esquerda e do progressismo chileno. Estas lideranças emergentes sobrepujaram os partidos e as estruturas tradicionais e obtiveram maior respaldo popular.

Desde o restabelecimento da rotina eleitoral no Chile em 1990, a eleição deste ano representa a primeira possibilidade concreta e real de eleição de uma plataforma anti-neoliberal para governar o país, e tendo a favor a força do processo constituinte, que se encaminha para assentar as bases legais e institucionais da perspectiva pós-neoliberal que poderá se tornar realidade com a eleição do governo da Frente Ampla.

A ativista feminista Soledad Parada, que até o último dia do governo Allende foi assessora presidencial de políticas para as mulheres, enxerga semelhanças entre a geração da qual ela fez parte, e a geração de lideranças de esquerda que hoje encabeçam o processo político.

Na visão dela, estas duas gerações coincidem na combatividade; na radicalidade e, sobretudo, por serem constituídas por militantes que não têm medo de lutar e combater pelos ideais de democracia, justiça e igualdade.

Os chilenos desconfiam das pesquisas eleitorais. Não é para menos, justificam, porque os prognósticos feitos por diferentes empresas pesquisadoras não raramente discrepam – e muito – dos resultados oficiais das urnas.

Os levantamentos publicados recentemente [a legislação chilena proíbe pesquisas nos 15 dias prévios à votação] sobre o 1º turno alternam prognósticos favoráveis tanto a Gabriel Boric como a José Antonio Kast, político da extrema-direita fascista que defende a ditadura Pinochet e idolatra Trump e Bolsonaro. Kast é filho de um ex-soldado nazista e irmão do ex-ministro de Pinochet Miguel Kast; um Chicago Boy contemporâneo do ministro bolsonarista Paulo Guedes.

Já em relação ao 2º turno a convergência de prognósticos é maior, indicando a vitória de Gabriel Boric. Ele tende a se beneficiar majoritariamente da transferência de votos de Yasna Provoste, ex-Concertación; além, claro, da intensa dinâmica social em curso.

As atenções latino-americanas estão voltadas para o Chile; país que, apesar de isolado com seu território longilíneo prensado entre a Cordilheira dos Andes e o oceano Pacífico; funciona como uma prodigiosa usina de experimentos democráticos, populares e decoloniais.

Quase 50 anos depois do golpe financiado e executado pelos EUA para interromper a via da transição democrática ao socialismo do presidente Allende, a esquerda chilena recupera força hegemônica e poder político para enterrar os escombros do pinochetismo e sua mais nefasta obra, o neoliberalismo.

(Texto originalmente publicado no BLOG Do Jeferson Miola)

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