Por José Dirceu
As eleições no Chile com uma guinada para a direita podem ameaçar os resultados favoráveis à centro-esquerda nas eleições constituintes de 2020. No Brasil, vê-se a boa vontade e até o apoio de certa mídia à pré-candidatura de Sergio Moro, mesmo depois da suspeição que foi introduzida em seu currículo pelos juízes do STF. Mas o mais grave sinal dos tempos que vivemos veio logo após o Dia da Consciência Negra, celebrado em todo o país em 20 de novembro com manifestações em mais de 110 cidades.
Assistimos a mais uma chacina, desta vez no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, abertamente assumida pelo Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) como vingança pelo assassinato de um sargento da PM, Leandro da Silva. Nesta região estão 8 das 10 cidades com maiores taxas de negros mortos pela polícia.
Mais uma vez, a Defensoria Pública afirma publicamente que foi uma operação de vingança e a própria ONU cobra investigação independente sobre a chacina.
A causa primeira da repetição de assassinatos em massa, de jovens e homens e mulheres, nas periferias pelas polícias está na voz de comando do presidente Bolsonaro. O chefe do Executivo estimula e apoia abertamente estes atos de violência. O presidente da República busca, inclusive, respaldo “legal” para a pena de morte –é disso que se trata– decidida e realizada pelas PMs, com o excludente de ilicitude.
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Truculência e execuções
Voltamos aos tempos da “polícia mineira”, do lema “bandido bom é bandido morto”, dos esquadrões da morte, da Operação Bandeirantes e dos Doi-Codis. Estamos de volta a quando havia ordens expressas de não fazer prisioneiros, e sim torturar e assassinar os opositores à ditadura militar, participassem ou não da resistência armada.
A 2ª causa do avanço das chacinas é leniência, quando não conivência, da Justiça com a violência policial e as execuções sumárias ou simplesmente operações de vingança. Mais grave é a anuência do Congresso Nacional por meio de aprovação de uma legislação permissiva à impunidade e à continuidade das execuções e chacinas, verdadeiros massacres.
Estas execuções agora são complementadas por operações policiais feitas aparentemente para impedir assaltos a cidades. Mas, na prática, como são premeditadas e planejadas via infiltrações nas quadrilhas do crime organizado, se transformam em cerco e aniquilamento de criminosos a pretexto de confiscar armamentos e aniquilar poder de fogo que colocariam em risco as vidas dos policiais. Sua gravidade é maior frente à decisão do STF que impediu ações similares durante a pandemia da covid-19.
A violência policial está intimamente ligada:
- ao racismo;
- à repressão contra os pobres;
- à criminalização dos usuários de drogas;
- a uma legislação penal totalmente desatualizada frente à própria experiência internacional;
- ao aumento absurdo de penas e de restrições à progressão penal e livramento condicional, penalizando a maioria dos 750 mil presos em nossos presídios.
As estatísticas não mentem: a principal vítima da violência policial são os jovens negros e pobres, da mesma forma que são eles que formam a maioria do contingente de presos.
Há farta documentação e pesquisas que comprovam que o fracasso das famosas UPPs foram a corrupção e captura dos Bopes, festejados nas telas pelo filme “Tropa de Elite”; a paralisia e o abandono dos programas sociais de renda e emprego, de melhoria das condições de vida, saneamento, transporte, creches, escolas de tempo integral, espaços públicos de lazer e cultura; além da ausência do Estado. Esse mesmo que se outorga o papel não apenas de polícia, mas de juiz e executor da pena de morte, banida por nossa Constituição.
O que precisa mudar na segurança pública
Toda e qualquer reforma da política de segurança pública tem que começar pelos presídios e pelas polícias. Sem isso nenhuma legislação, por mais rigorosa que seja, terá efeitos, da mesma forma que, como a experiência internacional comprova, não adianta aumentar o nível de repressão nem tornar as penas ainda mais severas.
É evidente que devemos rever o caráter punitivista e preconceituoso da nossa legislação penal e do sistema penitenciário. Atualmente, incapaz de ressocializar o condenado, o sistema não oferece as condições mínimas, que são o trabalho e o estudo, nem instalações dignas dentro dos presídios que, com raras exceções, são depósitos de presos e escolas do crime organizado.
As polícias militares precisam, urgentemente, retomar seu papel ostensivo e preventivo; e as civis, seu papel de investigação e de polícia judiciária dos estados. A orientação correta tem que ir na contramão do que ocorre hoje: o caminho é desmilitarizar as PMs. Elas não são força auxiliar das Forças Armadas, como defende e orienta Bolsonaro, ao estimular a politização de seus integrantes e sua insubordinação frente a autoridade dos governadores. Isto viola a Constituição e cria espaço para um poder paralelo, fora de controle.
O mais grave é que abandonamos a doutrina, a educação e obediência aos direitos humanos nos cursos de formação dos oficiais e soldados, nas academias militares. Passou-se a normalizar a convivência com o racismo e o preconceito ao diferente nesses ambientes. Corregedorias e Justiça Militar são ineficientes, inoperantes, quando não silentes com a violência e as execuções.
Apesar do fracasso da guerra contra as drogas, iniciada na gestão de Ronald Reagan na Casa Branca; das evidências do papel dúbio exercido pelo DEA (Drug Enforcement Administration) no combate ao tráfico, seguindo os interesses da política externa dos Estados Unidos; do abandono da criminalização de certas drogas por alguns dos estados estadunidenses; aqui no país continua se interditando todo e qualquer debate de mudança na legislação com relação a descriminalização de certas drogas e de uma mudança radical na política de segurança pública. Nos Estados Unidos, a tentativa de Trump de retomar o slogan e a política da era Reagan foi contestada até em seu partido.
Nossa torcida e expectativa é de que a maioria de nosso povo vote por um governo que abandone de vez o retrocesso imposto pelo governo Bolsonaro e sua ideologia de apologia da violência e da morte. E que retomemos o caminho que dita nossa Constituição de defesa irrestrita dos direitos humanos, da vida, da liberdade, dos direitos sociais, da educação, do trabalho e da moradia, da saúde, do lazer e da segurança das pessoas, do direito à defesa e ao julgamento a quem seja acusado de um crime.
A oposição e os seus partidos e governos estão devendo uma nova política de segurança pública. Para isso, é preciso fazer uma campanha educativa seguida de um debate com a população e conquistar maioria parlamentar para uma ampla reforma das polícias, do sistema penitenciário, da legislação penal e mesmo da Constituição para sua adequação à realidade atual.
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