Vale tudo para condenar? STF e STJ respondem: não! Por Lenio Streck

Atualizado em 20 de dezembro de 2021 às 13:19

Publicado na ConJur

Sergio Moro de braços levantados
Sergio Moro. Foto: AFP

Por Lenio Streck

1. Sardenberg volta à carga contra o STF e STJ; e como aprendo coisas na ConJur — Chile tem Nobel porque tem prisão perpétua!
Leio em O Globo do dia 18/12/2021 o jornalista Sardenberg fazer novo ataque ao Direito e ao STF. Denuncio esse tipo de ataque de há muito. E eu fico sob o ataque de um expressivo de pessoas paradoxalmente vindo da área jurídica. O leitor-comentarista Eliakim Seffrin do Carmo, a quem dou aqui meus cumprimentos, pegou bem a coisa. Magnífica postagem (ler aqui).

Leia também:

1- Bolsonaro bate recorde de desaprovação na pesquisa Ipespe; veja o percentual
2- AO VIVO: Gilmar Mendes dá entrevista ao UOL
3- Capitã Cloroquina defende negacionismo de Bolsonaro sobre vacinação infantil

“Aprendo” muito lendo comentários na ConJur. Nesta última coluna veio uma pérola digna de uma juspastoforia (que tragédias são provocadas por certos pastóforos. Rabelais, IV) ou de uma juslinostolia (Voltaire tinha enorme desapreço por linóstolos). Explico. Contra minha defesa das garantias processuais-constitucionais, o comentarista (anônimo) — que parece não ter passado de zoé (via nua) a politikòn zôon (animal político) — mostra que o problema do Brasil está em não ter prisão perpétua. Segundo ele, o Chile e a Argentina têm Prêmios Nobel por terem prisão perpétua. Bingo! Binguíssimo. Por que ninguém pensou nisso antes? Mais prisão, mais possibilidade de Nobel. Sempre ouvi dizer que correlação não significa causalidade, mas quem sou eu perto de um “jênio” desses? O comentário quase me tornou favorável à prisão perpétua, se é que me entendem.

O pior de tudo isso: como não há filtro, ninguém mais fica ruborizado. A vergonha já não salva. É essa maldita pós-modernidade, que chegou sem esgotar, nem de perto, a velha modernidade. E os idiotas perderam a timidez. Claro, o anonimato ajuda! Escondidos no anonimato das redes (aviso aos néscios: não se empolguem — quem assina este artigo e a coluna Senso Incomum é o professor mais citado, em livros e artigos científicos, em filosofia do direito na América Latina e um dos três mais juristas citados no direito em geral no Brasil). Isto é: paciência tem limites. Já que a ConJur permite qualquer comentário… por vezes tenho de riscar o chão. Ossos do ofício, lamentavelmente. Não culpem o mensageiro.

Sigo. Para dizer que uso, para meus comentários contra essas seitas negacionistas, a metafórica resposta do assessor de Clinton, afirmando-lhe as razões pelas quais venceria as eleições: “É a economia, estúpido“! Aqui reproduzo como “É o processo, estúpido“.

2. Por que Sardenberg tem tanta raiva das garantias processuais? Qual é a razão?
No O Globo do dia 18 último, o jornalista apela ao professor Joaquim Falcão, quem “encontrou as palavras exatas — e, pois, a tese — para definir o que está acontecendo: ‘processualismo patológico’. Quer dizer o seguinte: as Cortes não estão dizendo se alguém é inocente ou culpado, mas recorrem a suposta ‘impropriedade processual’ para anular condenações e provas. Ora, acrescenta Falcão, conforme citado na revista Crusoé, a sociedade não quer saber de labirintos processuais, mas se o suspeito cometeu ou não o crime”. (Nota: Se o professor Falcão não disse isso, entenda-se com Sardenberg).

Vamos lá. Como assim “a sociedade não quer saber de labirintos processuais, mas se o suspeito cometeu ou não o crime”? Qual sociedade? A que tem quase um milhão de presos? Quer dizer que o processo é despiciendo? Se basta apontar o autor, podemos eliminar o processo, correto? É isso?

Com o devido desrespeito, isso é de uma ignorância e de uma arrogância sem par. Que um jornalista diga isso, até podemos aceitar, embora vivamos a era do Google.

Mas um professor de direito dizer que garantias processuais (como juízo natural, imparcialidade — e nem vou falar de prova ilícita, etc.) são “impropriedades processuais” ou “patologia” parece um salto para além das conquistas civilizacionais do direito, pois não? Fosse um artigo médico, escreveria contra antibióticos?

Todos os dias lemos nos jornais coisas desse tipo. É o ódio ao que o procurador Dallagnol chamou de “filigrana jurídica”. Ora, qualquer estudante de primeiro ano de direito sabe que a primeira coisa que um advogado deve fazer é procurar saber se o devido processo legal está sendo seguido. O juiz é competente? Ele é imparcial? A prova é lícita? Os prazos foram seguidos? Há cadeia de custódia da prova? Se não fizer isso, é um advogado charlatão. Um causídico que pratica charlatanismo. Um negacionista do direito, que está na profissão errada. Isso tem de ser dito. Mas poucos no Brasil têm coragem de dizer certas coisas.

Lamentavelmente.

E sigo. Depois das anulações de processos por crassos erros cometidos por juízes mal preparados e parciais como Moro, secundados por procuradores conluiadores como Dallagnol, virou moda bradar pelo fim do processo e das garantias. É chique criticar Tribunais. Virou entrada para o grupo VIP dos isento-chics.

3. Coincidência: por quais razões jornalistas, jornaleiros e pessoas da área jurídica apoiaram as dez execráveis medidas de Moro e Dallagnol?
Repito o que disse na semana passada (ler aqui): quem critica garantias processuais e as chama de “patologia” é o mesmo tipo de gente que apoiou fortemente o nefando, o hediondo, o nefrário, abominável, execrável e diabólico projeto das 10 Medidas, que exterminava com o Habeas Corpus e institucionalizava o uso da prova ilícita de “boa fé”. Pelo projeto, valia de tudo — desde que o torturador (por exemplo) estivesse de boa-fé. É preciso dizer mais? Eis o DNA das seitas antijurídicas. Típicas. E culpáveis. Criminosas, portanto — já que não sei se ainda ensinam isso em faculdades.

4. Querem saber o que são “impropriedades processuais”?
Como já contei aqui na ConJur, se querem saber como se usam “impropriedades processuais” (sic), é só examinar processos judiciais de grandes empresas jornalísticas. Competentemente, os advogados (cumprimentos a eles) usam — muito bem — preliminares e garantias como prescrição, para falar apenas de uma. Sem contar com as clássicas “decadência do direito de…”. Como disse, parabéns. Direito é assim. E processo é garantia. Dallagnol chamou prescrição de câncer do direito. Mas ele usou, gozou e usufruiu dessa “filigrana”. Um antigarantista se torna garantista rapidinho quando as garantias são as dele. Aqui é causa e efeito.

5. Até na Inquisição o processo importava e ensejava absolvição por questão formal (defeito da prova)
Não temo em ser repetitivo. Como um anticharlatanista praticante, recomendei, semana passada, a leitura da tese de doutorado de Alécio Nunes Fernandes que trata dos defeitos de prova na Inquisição.

Os filigranistas de hoje (que chamam, sarcasticamente, garantias processuais de “impropriedades” e “patologias processuais”, como mostrei acima), deveriam se inteirar. Há quase quinhentos anos o processo já era fundamental.

Mas parece que não adianta discutir essa pauta. Sardenberg é convicto. E está baseado em outros convictos.

Muitos. Como disse o filósofo Tonto, são muitos.

Talvez tenhamos que implementar a prisão perpétua no Brasil. Ou a pena de morte. Imaginemos um acusador como Dallagnol e um juiz como Moro “combinando” como aplicar a pena perpétua. Ou de morte. Nesta última, o problema é que não tem volta. Mesmo que se declare a incompetência e a parcialidade. Aí o réu é morto.

E se acham que estou exagerando, lembrem-se que esse negócio mata mesmo. O reitor Cancellier vive em memória para lembrar que a espetacularização das garantias pode matar.

De todo modo, talvez então ganhemos Prêmios Nobel. Como sugere o comentarista “zoé”, escudado (ups) em nickname. Esse “dereito”; esse “ençino” jurídico. Esse Brasil… merecemos mesmo um Nobel.

Participe de nosso grupo no WhatsApp clicando neste link

Entre em nosso canal no Telegram, clique neste link