“Don’t Look Up” retrata a idiotice da modernidade. Por Natalia Pasternak

Atualizado em 27 de dezembro de 2021 às 10:27

Publicado na Revista Questão de Ciência

Don't Look Up
‘Don’t Look Up’, nova sensação da Netflix.
Foto: Reprodução

Por Natalia Pasternak

Foi impossível assistir ao filme “Don’t Look Up” (“Não Olhe para Cima”), dirigido por Adam McKay, e não me sentir representada pelos cientistas Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence). O professor de astronomia Dr. Mindy, e sua aluna de doutorado Kate, descobrem um cometa que colidirá com a Terra em pouco mais de seis meses, causando um impacto que certamente acabará com a vida no planeta. O filme retrata a incapacidade das pessoas, sejam cidadãos comuns ou governantes, de reagir de maneira racional à emergência.

(A partir daqui, spoilers!)

Quando os cientistas levam o assunto à presidente dos EUA, retratada por Meryl Streep como uma mistura de Trump com Bolsonaro, com direito inclusive a filho inútil em cargo importante, são ignorados e o assunto é colocado em segundo plano, pois a presidente tem questões mais urgentes a tratar, como o escândalo de estar nomeando seu ex-amante, um ator pornô, para uma vaga na Suprema Corte.

A imprensa também não recebe bem a notícia, pois é muito mais urgente – e dá muito mais ibope – transmitir ao vivo a reconciliação de uma famosa cantora com um famoso DJ. Ainda assim, os cientistas são ouvidos em um programa de TV.

Fui ver “Don’t Look Up” curiosa (e desconfiada) com os comentários nas redes sociais que me comparavam à jovem cientista retratada no filme. Tive de admitir que as semelhanças vão além dos cabelos ruivos. Quando vi a cena em que Kate dá uma bronca enorme ao ser entrevistada num programa supostamente jornalístico de TV, por apresentadores “fofinhos” que insistem em imprimir um tom leve e bem humorado nas notícias, mesmo nas mais trágicas, pensei que eu jamais perderia a calma assim ao vivo, em público. Mas então me lembraram deste episódio na TV Cultura, onde curiosamente eu me vi na mesma situação de Kate: uma tentativa de trazer “leveza” para uma questão de vida ou morte. Embora minha reação não tenha sido tão destemperada, a indignação e a incredulidade diante da incapacidade do público – e do jornalismo – de levar a sério o fato de que pessoas estavam morrendo foi a mesma.

(Antes que digam que estou fazendo alguma equivalência entre o “Daily Rip”, o telejornal de fofocas e fofices do filme, e o Jornal da Cultura – nada disso. Como toda caricatura, o “Daily Rip” exagera e amplifica certas características negativas de seu alvo: no caso, o telejornalismo em geral, que sofre com a orientação marqueteira de buscar o “lado positivo” das notícias, quaisquer que sejam, orientação à qual os bons jornalistas do mundo real ainda resistem – como e quando podem – mas à qual os jornalistas do mundo de “Don’t Look Up” se renderam completamente).

O jornalismo sério, retratado ali no jornal que claramente faz paródia ao New York Times (“The New York Herald”), até faz uma reportagem sóbria a respeito da iminente destruição da vida na Terra, mas após avaliar a repercussão nas redes sociais, e falar com a diretora da Nasa, desiste de dar importância ao assunto.

A repercussão é ruim, e não rende muito engajamento, a não ser pela oportunidade de transformar o cientista-chefe em símbolo sexual. E a diretora da Nasa, a autoridade máxima no assunto, afinal, dá uma declaração dizendo que é tudo exagero. Não interessa que o Dr. Mindy explique que a diretora é de fato uma médica anestesista e não astrônoma, e que só ocupa este cargo por favor pessoal da presidente dos EUA, enquanto ele e toda a comunidade astronômica concordam que o perigo é real. O desmentido da “fonte oficial” basta para pôr uma pedra em cima do assunto. Mais uma vez, temos uma caricatura que, se não reflete a realidade de modo preciso, identifica e amplifica problemas e distorções que são muito reais.

A postura da anestesista da Nasa não é muito diferente da realidade do Brasil, com a “autoridade máxima em medicina”, o CFM, dizendo que não é errado afirmar que cloroquina cura COVID-19, ou o ministro da Saúde contrariando a Anvisa sobre a segurança da vacina pediátrica da Pfizer. Se a diretora da Nasa, mesmo não sendo minimamente qualificada para o cargo, falou, então está falado e a mídia se sente obrigada a levar a sério o que ela diz. Assim também com diversos ministros da Saúde que passaram por Brasília, e presidentes de conselhos de classe.

O filme ainda explora a facilidade com que o cientista mais velho, interpretado por DiCaprio, deixa-se seduzir pela fama, já que se torna rapidamente o cientista-chefe na Casa Branca, apenas para mais tarde perceber que não tem de fato poder nenhum, e está apenas sendo usado como um rosto bonito para dar credibilidade ao “novo programa do governo”.

Quando a presidente percebe que pode fazer uso político do cometa para as próximas eleições, ela se aproxima do cientista, e desenvolve um programa para tentar desviar a ameaça. O programa, ainda que feito de forma extremamente midiática, tem chances de sucesso. Mas de repente, é abortado.

Entra em cena mais um retrato tão fiel da estupidez do mundo moderno que o espectador fica sem saber se ri ou se chora: a aliança entre os mercados de Big Tech e Bem-Estar. Eis que Peter Irshwell (Mark Rylance),o megamultibilionário dono da Bash, empresa de tecnologia que projeta celulares inteligentes que exibem automaticamente vídeos de bichos fofinhos quando sentem que o cliente está estressado, vê no cometa uma oportunidade única de lucrar com a infinidade de minérios e metais que poderiam ser extraídos dali. Isso, claro, descontando o fato ligeiramente desagradável de que o cometa vai destruir o planeta.

Detalhe importante: o bilionário também é o principal financiador da campanha da presidente dos EUA. Começa então uma jornada de picaretagem, pseudociência, e ataques sujos à reputação de cientistas sérios. Talvez esses detalhes passem batido para a maior parte dos espectadores, atordoada pelo absurdo geral do negacionismo, mas certamente não escaparam a esta cientista.

Enquanto o mundo se divide entre aqueles que “apoiam o cometa”, porque afinal vai gerar empregos, e aqueles que o enxergam como uma ameaça real, e claro, aqueles (32%, segundo o filme) que negam que o cometa exista, o professor Mindy tenta, em vão, conversar com o dono da Bash sobre a ideia no mínimo arriscada – e sem evidências de que possa funcionar – de usar drones com explosivos nucleares para recortar o cometa em blocos manejáveis, que poderiam ser explorados para a extração de minério. Mindy insiste que o projeto não passou pela revisão dos pares, e que muitos de seus colegas cientistas estão sendo demitidos e tendo suas reputações arruinadas por simplesmente pedirem mais informações sobre a viabilidade do plano.

O empresário se mostra extremamente ofendido, a presidente repreende o cientista por causar problemas com o financiador, e Mindy finalmente percebe que ninguém está interessado na ciência, e que não existe uma preocupação real com os fatos e com a destruição iminente. A semelhança do empresário com os grandes gurus das indústrias de tecnologia e bem-estar é marcante.

A campanha “Don’t look up” (“Não olhe para cima”), lançada pelo governo federal dos EUA, para se contrapor à campanha “Just look up” (“Olhe para cima”), lançada pelos cientistas quando finalmente o cometa se torna visível a olho nu, e é impossível não perceber que ele está vindo para a Terra, não é mais absurda do que “cloroquina cura COVID-19”, ou “vacinas causam aids”, ou a mais recentes “vacinas para crianças não são seguras”.

Assistir ao filme, sendo brasileiro, é rir da triste realidade de ver um país inteiro sendo vítima de um governo não fictício que diz para não olharmos para cima. A pandemia nem existe, as vacinas fazem mal, e aqui estão as curas milagrosas. Nós, brasileiros, sabemos muito bem o que é ter o negacionismo vindo diretamente do governo federal. O filme é a triste constatação de que o que vai nos matar não será um vírus, nem um cometa. Vamos morrer mesmo é de idiotice humana.

 

*Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra vencedora do Prêmio Jabuti em 2021, e “Contra a Realidade”(Papirus 7 Mares). Atualmente, é “visiting scholar” em Columbia University.

 

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