“Não olhe para a Constituição”: o “filme” do negacionismo do Direito. Por Lenio Streck

Atualizado em 30 de dezembro de 2021 às 11:08
Os acordos de delação premiada foram um dos principais mecanismos utilizados pela Operação Lava Jato
Procuradores da Lava Jato de Curitiba

O jurista Lenio Streck, do Grupo Prerrogativas, publicou um artigo traçando paralelos entre o filme “Não Olhe para Cina” (Netflix) e as ilegalidades da Operação Lava Jato. Está no Consultor Jurídico (ConJur).

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Filme do negacionismo do Direito

Coluna derradeira de 2021. Há um filme novo na praça: Não Olhe para Cima, do diretor Adam McKay, que nos joga na cara — ou nos dá um pontapé no estômago — os tempos negacionistas e estúpidos que vivemos.

O filme? Sem spoiler, cientistas descobrem um cometa que destruirá a terra. Sabem até o dia e a hora. Mas como contar isso ao mundo para que autoridades, mídia e a malta levem a hecatombe a sério? Como Cassandra deixa de ser?

Em tempos de narrativas, um cometa real, do tamanho do Everest, é transformado em meme. O caos vira brincadeira tik tok. Bem assim. Pior: como que a provar o acerto do filme, muitos néscios interpretam o filme como se desse razão aos negacionistas. Incrível. Uma espécie de “Roger-a-Gente-Somos-Inútil-Effect”.

Como na vida real, tudo pode ser transformado em mercadoria, em laiques, em produto de influencers. Nota: aqui completo dez linhas. Quem não consegue ler mais do que isso, já antecipo um Feliz Ano Novo.

Para os demais, sigo. O sujeito está caindo sem paraquedas, é avisado disso e responde: “— isso é na sua opinião”. A distopia de MacIntyre foi captada por McKay. O Know Nothing (Saber Nenhum) venceu.

Os negacionistas, mesmo diante dos dados científicos sobre o cometa assassino de planetas, dão a seguinte solução: “não olhe para cima”. Pronto. Solucionado está. O que os olhos não veem, o cometa derruba. Mas é só não ver.

Vejam: há os cientistas que descobriram o cometa; e há os que pegaram carona na descoberta… Há os que vasculham telescópios; há os que não vasculham. Mas falam que vasculham. Enfim, como na vida real. No Direito também é assim.

Eis os tempos em que vivemos. O diretor do filme pegou bem o busílis. Pandemia? Aha, não vem como esse papo. Comprar vacina? Não, vamos usar cloroquina. Cloriquejandices.

Aliás, no filme, em vez de tentarem destruir o cometa (vacina), o maior empreendedor do mundo “convence” o governo de que ele pode resolver tudo com Inteligência Artificial (kit cloroquina). Pois é. Há ecos em outras áreas… Algo como o “FATOR NAVAH”: em hebraico antigo, significa “dar existência a coisas que não existem” (e tornar inexistentes coisas que existem). Antes de Platão, ali já estava a denúncia de ficções e coisas fake.

Ciência? Para quê? Mais ou menos como os negacionismos no Direito. Por que um terraplanista não vai até a borda do mundo e tira foto para demonstrar sua tese? Simples: É que o terraplanista prefere ficar fazendo narrativas. Vive disso. Porque não há a realidade que diz que há. Se dois jornalistas discutem se está chovendo, cada um escreve seu texto. Mesmo que ambos saiam para verificar, um deles, molhado, volta e diz: “— A chuva é uma questão de opinião”. Lembram de um jornalista quem disse que sete votos do STF não eram sete votos? Nem a matemática resiste ao narrativismo. Outra nota: para quem assistir o filme Não Olhe Para Cima, vai um aviso: depois dos letreiros, tem uma cena magnifica que ilustra isso que estou dizendo…!

Assim é no Direito. O meio ambiente vai sendo degradado. Bernd Rüthers denuncia isso com o nome de “degeneração”. Mas o que importa é a narrativa. As prisões estão lotadas. Mas não adianta mostrar as prisões. A narrativa cobre tudo. Solução: vamos endurecer as leis. Em vez de investir na educação, aumentemos o orçamento das forças policiais. Não olhe para a Constituição. Não olhe para a educação. Olhe o programa do Datena. E do Ratinho. Tem que prender mais, matar mais. Porque sim. Dane-se a CF. Dane-se a Lei de Hume. Tiremos nossos “deve” de um “é”. E não olhemos para cima.

Não olhe para a democracia — é filigrana (sic) — e para o Estado Democrático de Direito (só é bom se me serve; algo como a prescrição). Olhe para as redes sociais que querem a ditadura. Não olhe para livros complexos que tratam do Direito. Não “olhe” textos com mais de dez linhas. Olhe coisas tik tok. Olhe para os textos curtinhos que dizem que “garantias processuais são patologias”. Isso dá laiques.

Do mesmo modo, lanço aqui um desafio. Todo o sujeito que estudou direito minimamente (mesmo que seja na faculdade do balão mágico) e que tenha alguma vez assumido a defesa de um algum cliente (mesmo sendo um parente chato e pro bono) está desafiado a mostrar sua petição ou a defesa que vez para seu cliente. Se não usou as técnicas processuais (preliminares de competência, prescrição, decadência, etc, alegação de ilicitude probatória, testemunha inidônea, parcialidade do juiz, negativa de autoria, exceção da verdade, etc) das duas uma: ou é um advogado charlatão que “entregou” seu cliente ou o processo, se criminal, foi declarado nulo (réu sem defesa). Tertius non datur.

Um Direito sem processo (tão odiado ultimamente) é como um médico que quer tratar seus pacientes com frutas e verduras… para doenças que exigem… antibióticos. Vacinas? São fruto de conspiração. Um cometa vem arrasar a terra? Isso é na sua opinião. Não olhe para cima. Não olhe para a ciência.

“— Não olhe para a Constituição, para o procedimento, para as garantias”. O problema é que, quando for você precisando delas, talvez o cometa já tenha chegado.

Um recado para professores de Direito, bacharéis, jornalistas e jornaleiros: não existe democracia sem garantias processuais. No mundo todo. E, atenção: isso não é assim por que é minha opinião. Não. Isso é científico.

Feliz Ano Novo. Olhe para 2022. Sem negar o que passou. Marcando na paleta os sacanas de 2021, 2020, 2019… etc.

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