Eny Raimundo Moreira, a advogada que enfrentou a Ditadura Militar
Por Frei Betto
Imagine uma penitenciária de presos comuns, guardados em regime de segurança máxima, no interior de São Paulo. Mude agora o foco da fantasia para o bairro do Leblon, no Rio. Acredita que uma jovem advogada possa trocar a Zona Sul carioca, em plena noite de Natal, pela convivência com presos comuns?
Em 1972, eu me encontrava na Penitenciária de Presidente Venceslau (SP), em companhia de mais cinco presos políticos – os frades Ivo Lesbaupin e Fernando de Brito, o camponês Manuel Porfírio, o jornalista Maurício Politi e o advogado Wanderley Caixe – todos misturados, por arbítrio da ditadura militar, a centenas de presos comuns. O trenó da solidariedade nos levou um presente inusitado no Natal: a presença de nossa advogada, Eny Raimundo Moreira. A direção do cárcere não conseguia entender por que ela preferiu passar ali aquele período de festas, longe de seus familiares e amigos. Por que os “terroristas” mereciam tanta atenção?
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Eny era mais do que mera advogada. Destacava-se pela garra, pelo destemor frente ao aparato necrófilo da ditadura. Pequena na estatura, era grande na coragem. Mineira de Juiz de Fora, pele cor de amêndoa, tinha o raciocínio ágil e transpirava afeto.
Em 13 de junho de 1972, Paulo Vannuchi, um dos clientes da doutora Eny, compareceu à Auditoria Militar de São Paulo para depor como testemunha em um processo. Eny denunciou ao juiz Nelson da Silva Machado Guimarães a tortura que ele sofrera no DOI-CODI, a 9 de maio: apontou o hematoma no olho esquerdo e os sinais de enforcamento no pescoço. Pediu que ele abaixasse a calça e mostrasse hematomas na virilha e na perna esquerda, esfolamentos e escoriações diversas. Paulinho declarou que os torturadores, frente à sua resistência em não ingerir alimentos no decorrer da greve de fome, introduziram um tubo em seu ânus, por onde injetaram leite.
A única reação do juiz foi prometer que o prisioneiro não retornaria ao DOI-CODI.
A coragem da Eny era desproporcional ao seu tamanho. Tinha a quem puxar: trabalhou no escritório do famoso advogado Sobral Pinto, no Rio. Católico convicto, Sobral defendeu Luiz Carlos Prestes, líder comunista, sob a ditadura de Getúlio Vargas.
Graças também ao empenho de Eny, a memória nacional resgatou, na obra “Brasil Nunca Mais” (Vozes), assinada por Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright, as atrocidades cometidas pela ditadura.
Foi ela quem encontrou as vias transversas para acessar os arquivos do Superior Tribunal Militar, em Brasília, e microfilmar todos os processos de presos políticos.
Na noite de Natal de 1972, a Penitenciária de Presidente Venceslau programara missa celebrada pelo capelão, um padre espanhol mais próximo dos carcereiros que dos condenados, na contramão de Jesus. Apelamos ao diretor para que Eny pudesse participar. Seria ele tão desalmado a ponto de permitir que ela, distante do Rio, ficasse sozinha num quarto de hotel naquela noite significativa? Vencido por nossa pressão, o homem cedeu.
Armou, no pátio da penitenciária, um palanque e, dentro dele, o altar. Lá embaixo, quatrocentos presos uniformizados e enfileirados. No momento da homilia, o celebrante deu a palavra ao diretor. Pronunciou um farisaico discurso, como se todos ali não soubessem que ele era conivente com torturas, castigos abusivos em solitárias, onde presos ficavam semanas trancados nus, às escuras, suportando o frio e a água com que os guardas molhavam o chão.
Em sua ânsia demagógica, o diretor cometeu o erro de exaltar o gesto da doutora Eny Raimundo Moreira, que viera de uma cidade distante para comemorar o Natal com seus clientes. Pediu uma salva de palmas à Eny. E ainda solicitou que ela dissesse uma palavra aos “reeducandos”.
Surpresa e bastante emocionada, ela nos dirigiu a palavra. Impossível reproduzir o que disse. Um canto de amor não pode ser descrito. Como doce perfume, suas palavras contagiaram o ambiente. Seu carinho penetrou o coração de cada presidiário. Só lembro que terminou dizendo: “Beijo cada um de vocês”. Mas não se limitou à palavra. Emocionada, preferiu uma atitude:
— É noite de Natal – disse – e quero dar um abraço em cada um de vocês.
Abandonou o microfone e veio em direção aos bancos onde estávamos. Desceu do palanque-altar e, durante duas horas, sob um silêncio clamoroso, enquanto a banda de presidiários tocava as peças finais, ela caminhou lentamente entre aqueles homens uniformizados, enfileirados nos bancos, e abraçou e beijou cada um daqueles quatrocentos homens, a maioria há anos sem receber o carinho ou o toque de uma mulher. Choravam convulsivamente. Corações de pedra transmutavam-se em corações de carne, como reza a Bíblia.
Muitos companheiros não suportaram a ternura que extravasava daquele gesto. Um deles disse a ela: “É a primeira advogada que vejo advogar com amor”. Outros disseram: “Frei, por esta mulher, eu mato qualquer um” (dentro daquele mundo, isto era uma forma de elogio); “Eu não acreditava em gente boa, mas agora sou obrigado a reconhecer que estava errado”; “Não podia haver melhor presente”.
Durante muito tempo, o assunto ali foi a presença de Eny.
Na segunda-feira, 25 de dezembro, Eny voltou cedo para passar o dia conosco. Foi a única visita que nós seis recebemos. Demos a ela, de presente, desenhos feitos pelo Caixe e o Mané. O time campeão da casa ofertou medalhas e faixas, que ela recebeu feliz. Todos queriam agradecer-lhe de alguma forma.
Eny partiu na manhã seguinte. Mas sua presença perdurou.
Assim era Eny, advogada que não sabia atuar, em nível efetivo, sem o complemento do afetivo. Foi o anjo da guarda de centenas de presos políticos da ditadura e, como discípula de Sobral Pinto, defensora intransigente dos direitos humanos.
A história do Brasil a merece. E as vítimas da ditadura agradecem a vida, a coragem e a competência desta encantadora mulher, que aos 77 anos transvivenciou em São Paulo, acometida por problemas no coração e nos rins, na terça, 4 de janeiro de 2022.
Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
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