Instituto de MG cria “geladeiras solidárias” contra a fome

Atualizado em 10 de janeiro de 2022 às 11:35
O nome do projeto é criativo e inspirador: ‘Quem tem, põe. Quem não tem, tira’

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO PORTAL DO INSTITUTO FOME ZERO

O último relatório da Rede Penssan, de dezembro de 2020, mostrou que 55,2% dos domicílios brasileiros conviviam com a insegurança alimentar, sendo que 20,5% da população não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome, em insegurança alimentar grave.

Passado mais de um ano e com o aprofundamento da crise econômica, desemprego crescente, inflação de dois dígitos e morticínio da pandemia, muito provavelmente o Brasil iniciou 2022 vivendo a maior crise sanitária de sua história.

A situação atual é grave pois os instrumentos básicos de combate à fome, as políticas públicas construídas por vários governos durante décadas e que funcionavam integradamente, foram desmantelados pelo governo Bolsonaro; seu primeiro ato simbólico, no dia da posse em janeiro de 2019, foi a extinção do CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Some-se a isso as dificuldades orçamentárias dos estados e dos municípios, entes decisivos no combate à fome, e o que temos é um imenso vácuo de Estado; no dias atuais, a parte mais sólida do combate à fome é o vazio de Estado.

Apesar do negacionismo estrutural, parcelas significativas dos famélicos têm sido atendidas por ações comunitárias, pois quando o Estado se oculta, a única resposta possível vem da sociedade. Tem crescido, Brasil afora, o número de restaurantes populares, cozinhas e hortas comunitárias, bancos de alimentos, distribuição de cestas básicas e distribuição de comida pronta, as chamadas sopas, o que ajuda a diminuir o impacto da falta de políticas públicas consistentes; ajuda mas não resolve o problema.

Projeto geladeira solidária. O seu lema é ‘Quem tem, põe. Quem não tem, tira’

Para amenizar os efeitos da pandemia, uma importante inovação no combate à fome surgiu em Uberlândia. Um pequeno grupo de ativistas sociais criaram as Geladeiras Solidárias com a intenção de atender aos moradores de rua. Atualmente são três geladeiras espalhadas por Uberlândia que oferecem, em média, 100 refeições diariamente, de segunda a domingo, com o lema “Quem tem põe. Quem não tem tira.”
A experiência bem sucedida em Uberlândia serviu de incentivo a outras cidades da região, como Ituiutaba (MG), Santa Vitória (MG), Tupacigura (MG), Goiânia (GO), Jataí (GO), Rio Verde (GO), Palmas (TO), Cuiabá (MT), entre outras.

Cada geladeira tem sua própria coordenação local que é responsável por mantê-la funcionando, limpa e abastecida com café da manhã, almoço e jantar, tendo sempre o cuidado de forní-las com alimentos de qualidade. Cada cidade tem uma coordenação geral responsável por supervisionar e facilitar o relacionamento com a comunidade e com os orgãos municipais de fiscalização e segurança. Além da assistência alimentar, é oferecido higiene pessoal e vestimenta.

Um papel importante é que, do mesmo modo que a distribuição de alimentos feitos por grupos socorristas, no caso da geladeira solidária a comida vai até o faminto e não o faminto vem à comida, no entanto, ela tem a vantagem de estar disponível o dia todo, e não apenas no período de tempo em que se dá a distribuição, o que aumenta a sua capacidade de atendimento da demanda por alimentos e produtos de higiene.

Lilian Machado de Sá, ativista social que nos apresentou o programa, explica que “a iniciativa é muito simples e descomplicada: basta uma geladeira instalada num lugar adequado e uma campanha de divulgação pedindo e orientando aos moradores da redondeza como manter a geladeira abastecida de alimentos. As geladeiras são limpas, preparadas com adesivos explicativos e, pronto, isso é tudo para que o ponto de abastecimento comece a funcionar.”

Projeto geladeira solidária. O seu lema é ‘Quem tem, põe. Quem não tem, tira’

Na concretude dos tempos atuais, estamos convivendo com uma imensa multidão de pessoas que passam fome. Elas estão ao nosso redor, espalhadas pelas ruas de nossas cidades e de nossos bairros, muitas acampadas nas calçadas, outras morando embaixo de pontes, aquarteladas nas praças públicas, famintos estão em nosso caminho diário, no entanto, mesmo com toda essa visibilidade física, a sociedade insiste em não enxergá-las; ou as enxergam e não as vêem por achar natural.

O aumento das desigualdades com crescente acumulação de riquezas em mãos de poucos, a proliferação acentuada da miséria, o aumento acelerado das iniquidades sociais incluindo o acesso desigual aos alimentos, condena a morte lenta e diária milhares de pessoas. Entendendo que o que nos faz sermos humanos é a sensibilidade às diferentes situações da vida, a percepção da alteridade e o sentimento de cooperação, o convívio continuado com a fome nos embrutece e expõe a face perversa da miséria humana: a falta de solidariedade humana para com nossos semelhantes.

A alimentação não é apenas a mais básica das necessidades humanas, ela é também o vínculo mais forte com a dignidade humana. A história da humanidade demonstra que a fome é a coveira da dignidade pois impede a possibildade de socialização das pessoas. A fome, além de ser percebida como uma doença, revela-se como um estado de desvalorização social do sujeito perante o mundo e a sociedade, um sentimento de humilhação, sem qualquer esperança de sair das condições sociais em que se vive. É o reinado da desesperança.
Josué de Castro, ativista social pioneiro no combate à fome, nos ensinou que “a fome é a manifestação biológica de uma doença social”. Ele, que dedicou mais de 50 anos de sua vida a estudar a fome, se propôs a entender quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome.

Sua conclusão, da década de 1940, continua a mesma: “Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tomaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente. […] Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalharam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno.”

Projeto geladeira solidária. O seu lema é ‘Quem tem, põe. Quem não tem, tira’

A iniciativa das Geladeiras Solidárias, além de ser inovadora, é muito promissora pela sua simplicidade para ser implementada e pela capacidade de ampliar os circuitos de solidariedade e inclusão social. O Prof. Antônio César Ortega, da Universidade Federal de Uberlândia aponta que “mesmo trabalhando como consultor da FAO no Programa Fome Zero, me surpreendi com uma iniciativa tão simples e inclusiva quanto essa, pois as geladeiras solidárias permitem que anônimos – pessoas invisíveis -, alimentem aqueles que são invisibilizados pela fome. E isso é mágico”
Conheça mais sobre o Projeto Geladeiras Solidárias e aprenda como implementá-lo em sua cidade.

Participe de nosso grupo no WhatsApp clicando neste link

Entre em nosso canal no Telegram, clique neste link