Carlos Henrique Siqueira
Poucas horas após a Rússia anunciar que reconheceria a independência de Donetsk e Luhansk, Donald Trump disse que Putin era um “gênio”. Um dia após os ataques, Nick Fuentes, um notório supremacista-racial, pediu uma salva de aplausos para Putin enquanto discursava para uma plateia de “jovens homens brancos” no evento do AFFPAC, All For Family Political Action Conference.
No Brasil, Breno Altman afirmava que não se podia dizer que houve uma “invasão russa”. E Janaína Paschoal, famosa deputada estadual direitista, eleita na onda bolsonarista, fazia coro com o esquerdista Altman, dizendo que não há uma guerra, mas atos de “legítima defesa”.
Enquanto isso, outra vertente do debate acredita que estamos numa batalha entre a democracia e a tirania. O Império Russo estaria avançando sobre o reino da liberdade européia, com um projeto expansionista. E, de fato, Putin é o agressor. Mas, e se a história for mais complicada, se ela não couber exatamente nessa estrutura novelesca?
Na era do Twitter, dominado pela lógica dos enunciados de 280 caracteres, das frases truncadas, do pensamento fragmentado, complexificar essa narrativa pode ser um ato facilmente enquadrado como uma defesa de Putin.
A imprensa, por sua vez, enquadra o conflito como um embate entre mocinhos e bandidos. Essa narrativa pode ser vendida com mais facilidade, e mantém as pessoas coladas à tela. Ao comediante Zelenzky, o presidente anti-sistema, o presidente anti-política, o presidente anti-establishment da Ucrânia deram o papel de herói. Ao o russo… você pode imaginar o papel do russo.
Pouca ou nenhuma nuance sobre o papel da geopolítica no embate, nenhuma reflexão sobre a história da tensão. O agente oculto do conflito, os EUA, é mencionado apenas como se fosse um observador externo. Complexificar é papel para o especialista, que geralmente aparece nessa história como um narrador deslocado expondo ideias que não se encaixam muito bem na estrutura da história que está sendo contada.
A complexidade desse conflito, como se vê, provocou um curto circuito no debate. De um lado, os anti-liberais autoritários de várias vertentes celebram Putin e suas ações. Do outro, os partidários do liberalismo armado se recusam a considerar as raízes históricas dos problemas.
Abaixo, tentarei descrever as três ou quatro posições mais comuns sobre o problema. Faço essas observações a partir de uma dessas posições e, portanto, provavelmente não fui completamente justo com todas elas. Mas é uma tentativa de compreensão não do conflito Rússia/Ucrânia, mas dos discursos sobre ele, e das ideologias que o fundamentam.
É preciso também entender que essas posições podem mudar, e provavelmente já estão mudando. As posições listadas abaixo correspondem aquelas que apareceram logo após a eclosão da agressão russa. O conflito é dinâmico e as opiniões podem se mover.
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A posição liberal-idealista
A primeira posição que destaco é a que chamo de liberal-idealista porque quem a defende acredita na expansão contínua da versão de democracia liberal ocidental, de matriz norte-americana por a considerarem uma ideologia superior. As pessoas que têm essa posição desprezam ou colocam em segundo plano as ações de força dos EUA e aliados para sua expansão, mesmo quando essas ações consistiram na derrubada de governos democraticamente eleitos, como aconteceu com Chile, Brasil e Irã em virtude de objetivos geopolíticos.
A posição liberal-idealista defende que a guerra é um puro ato tirânico de Putin. As pessoas que têm essa posição enxergam o conflito nos termos de uma luta entre liberalismo e iliberalismo. Elas consideram que a Ucrânia está num processo de luta democrática e liberalização, e que é justamente por isso que Putin atacou o país.
Elas recusam a fazer considerações sobre a geopolítica, como a questão da OTAN. Elas consideram que trazer esse tema para o debate seria conceder legitimidade à agressão de Putin.
Elas representam o conflito nos termos de um embate entre o avanço da democracia liberal e os autoritários iliberais que impedem o progresso. Para elas, Putin quer prioritariamente destruir a democracia na Ucrânia. Crêem também que a Rússia têm planos mais ambiciosos de expansão, chegando até mesmo a ameaçar a Europa Ocidental.
É comum encontrar nessa posição pessoas que consideram os EUA é o “wachtdog” da da ordem internacional, e aprovam, nem sempre abertamente, sua posição imperial, seu impulso expansionista e seu papel de juiz dos regimes políticos aceitáveis e inaceitáveis.
Essas pessoas acreditam que a Ucrânia tem o direito soberano de escolher livremente se quer fazer parte da OTAN, o que implica em abrigar armas que visam atingir a Rússia, sem que a Rússia tenha nenhum direito de interferir nessa decisão.
Também incluiria nessa posição os racistas liberais (sim, eles existem). Tem sido uma linha de defesa bastante presente na mídia mainstream, o fato de que a Ucrânia é um país de pessoas brancas, é um país europeu, e por isso os bombardeios não deveriam ser tolerados, como são tolerados no Oriente Médio ou em qualquer país do 3º Mundo.
Os apoiadores de Putin
Aqueles que apoiam abertamente a guerra e Putin são, sobretudo, pessoas que estão na extrema-direita ou extrema-esquerda, antiliberais e antidemocráticas, dependendo do caso.
A extrema-esquerda apoia a guerra abertamente porque acredita que Putin, um autoritário conservador, anti-comunista, está numa luta anti-imperialista. Ela acredita que baseada nessa agenda, a Rússia tem o direito de romper com o direito internacional, invadir um país estrangeiro, anexar territórios e depor governos.
A extrema-esquerda, com pouca adesão popular, e mais visibilidade nas redes sociais que na atividade política propriamente, ainda cultiva um certo entusiasmo pela violência, e vê na miragem do capitalismo oligopolista da Rússia de hoje, uma oportunidade de reviver uma nostalgia soviética.
Essas pessoas acreditam literalmente nas alegações de Putin, de que o governo da Ucrânia seria neonazista, e que sua ação teria o intuito de proteger russos em território ucraniano. A peculiaridade dessa posição é que ela não desafia nenhum ponto do discurso de Putin. Essas pessoas aceitam suas palavras pelo seu valor de face, abdicando da grande tradição esquerdista de crítica à ideologia. Para essas pessoas, o presidente da Rússia seria praticamente o único político no planeta que fala a verdade e que não esconde suas intenções e projetos por trás de um discurso ideológico.
A extrema-direita, por sua vez, apoia Putin porque ele representa uma posição conservadora, iliberal e anti-globalista. Quem representa essa posição acredita que o presidente da Rússia está combatendo forças políticas que querem homogeneizar o planeta e privar a Rússia da possibilidade de conduzir o seu projeto político nacional, enraizado na história russa. Putin é uma resistência ao globalismo e ao liberalismo, as mesmas forças capturaram a Europa.
A extrema-direita vê na Rússia de Putin a viabilidade de um governo que represente o ideal autoritário de um líder que busca proteger seu povo e seu país das influências nefastas da agenda da esquerda. Ou seja, um governo que reprime abertamente os liberais, os globalistas, George Soros, e todo o rol de supostos inimigos do Ocidente que trabalha para corromper os pilares da cultura cristã. A agenda de Putin, para eles, envolve a proteção da família tradicional, dos papéis tradicionais de gênero e da homogeneidade da raça.
A posição pragmática
Chamo essa posição de “pragmática”, ao invés de “realista”, porque ela contempla a opinião não só de realistas, mas de pessoas que colocam a história e a geopolítica no cálculo da avaliação do evento. Para essas pessoas é mais importante encontrar uma solução negociada para o conflito do que o compromisso militante com as utopias do liberalismo.
No caso específico do conflito Rússia-Ucrânia, essas pessoas se recusam encara-lo pela lente maniqueísta da narrativa da propaganda de guerra ou da mídia. Essa posição tem um forte compromisso com o fim da guerra e o encontro de uma solução negociada. Nesse sentido, estão dispostas a abrir mão da defesa intransigente do liberalismo em favor de compromissos e concessões mútuas que possam cessar a atividade bélica.
Os pragmáticos reconhecem que houve uma violação da lei internacional e atos de guerra promovidos pelo governo de Putin. Portanto, eles não acreditam nas razões alegadas para a invasão, qual seja, a de reprimir um governo neonazista e prestar ajuda humanitária à população de identidade russa na Ucrânia.
Mas, diferente da posição “liberal-idealista”, essas pessoas partilham da visão de que a Ucrânia tem sido instrumentalizada pelos EUA/OTAN para isolar e encurralar a Rússia a partir de uma pressão bélica, num longo processo que data dos anos 90. Um sinal de que a geopolítica da OTAN tem um papel importante nesse conflito é o fato de que ela não foi desmobilizada com o fim da URSS, tornando-se então uma ferramenta direcionada para lidar, desse momento em diante, com um Estado nacional, a Rússia, e não mais o bloco comunista do leste Europeu. A continuidade da OTAN no mundo pós-soviético criou uma assimetria de poder importante na região.
Essas pessoas têm entendido a guerra como uma reação ao projeto de longo prazo de expansionismo liberal para leste, e de pressão bélica sobre a Rússia. Essas pessoas têm muitas reticências sobre a Revolução Laranja e sobre o Euromaidan. Elas vêem muitos indícios de que este último evento, por exemplo, tenha sido uma crise alimentada externamente, para a derrubada de um presidente que não se alinhava ao projeto euro-americano. Os eventos de 2014 derrubaram um presidente que era considerado um obstáculo importante para a integração da Ucrânia à OTAN, frustrando o projeto de isolamento e pressão bélica sobre a Rússia.
Nessa posição, as pessoas acreditam numa solução diplomática. A solução militar para esse caso, como a tomada de Kiev, deixará marcas profundas e o conflito latente. Enquanto não houver predisposição para um acordo sobre os limites da expansão da OTAN, e o distensionamento da desconfiança mútua, o clima de guerra continuará.
Entretanto, quanto mais destruição causada pela Rússia em território ucraniano, mais difícil será uma negociação justa. Assim como o aprofundamento das sanções econômicas, não raras vezes, costuma fortalecer o ditador de plantão quando ele consegue sucesso em unificar o povo contra um adversário comum.
Publicado originalmente por Carlos Henrique Siqueira
O que é pior de aguentar?
— DCM ONLINE (@DCM_online) March 10, 2022