“Na Segunda Guerra Mundial, um dos lados dominava a tecnologia atômica, possuía um arsenal relativamente incipiente, que foi usado de modo localizado. Hoje, os dois lados possuem um arsenal atômico que pode destruir toda a humanidade muitas e muitas vezes. Por isso digo que esta pode ser a verdadeira primeira guerra mundial”, diz Domenico De Masi.
O sociólogo italiano recebeu o DCM na sua casa em Roma. Para ele, um dos autores estrangeiros mais vendidos no Brasil, estamos à beira do abismo devido a 30 anos de erros.
“As relações geopolíticas mantidas até agora partiram do pressuposto de que a Europa estava livre do nazi-fascismo graças aos americanos, que a América representa o modelo a ser imitado, que a Rússia representa um corpo estranho à Europa”, afirma.
“Tudo isso ao invés de levar em conta que a Rússia deu uma contribuição decisiva para a derrota do nazi-fascismo, que o modelo americano também tem defeitos a serem evitados, que a Rússia representa historicamente um país orgânico para a Europa”.
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De Masi, que nasceu em 1938 e garante ter recordações vívidas da Segunda Guerra, chama de loucos os responsáveis por trazer o mundo à esta situação:
DCM: Em paralelo à batalha campal, existe sempre a guerra de narrativas. Diz o ditado que a verdade é a primeira vítima da guerra. A versão russa e a ocidental sobre o conflito na Ucrânia, tanto no discurso oficial quanto em suas respectivas mídias, não poderia ser mais polarizada. Existe espaço para alguma nuance na leitura desta situação?
Domenico de Masi: O continente europeu está passando por uma guerra que corre o risco de se tornar nuclear, e só um louco pode ter desencadeado algo que beira a possibilidade de destruir todo o planeta. Mas os loucos representam uma percentagem considerável da raça humana e, se Putin fosse o único louco em nosso mundo, todos os outros já teriam desmantelado seu arsenal atômico.
Fato é que as relações geopolíticas estabelecidas nos últimos anos entre a Europa, este louco e o povo que ele representa não conseguiram evitar um resultado tão catastrófico. Portanto, estas relações devem ser profundamente modificadas.
E qual deveria ser a postura do Ocidente ou, pelo menos, da Europa ao lidar com a questão russa?
Até a queda dos czares, a Rússia sentia-se intimamente europeia e as interações eram intensas. Então, após a Revolução Bolchevique de 1917, as atitudes dos europeus se polarizaram entre simpatia pela União Soviética por parte da esquerda e hostilidade por parte da direita. Após a Segunda Guerra Mundial, a relação se distanciou de vez e todo o espaço foi ocupado pelos Estados Unidos.
A aliança atlântica forçou a Europa a fazer sua a geopolítica decidida unilateralmente pelos Estados Unidos, por seu interesse preeminente. Com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, a Europa poderia ter aproveitado o período de evidente fraqueza russa para pôr fim às relações bipolares e essencialmente hostis, substituindo-as por relações multipolares e tendencialmente colaborativas. Ao invés disso, as escolhas europeias nos levaram inevitavelmente ao limiar do abismo que a humanidade nunca havia tocado antes.
Continuamos repetindo que Putin é louco, mas o fato é que os homens e ferramentas que mobilizamos para neutralizá-lo falharam, embora os gastos militares da OTAN sejam quase 17 vezes maiores do que os da Rússia e seus estados-membros passaram de 12 em 1989 para 30 atuais. Portanto, novas relações geopolíticas na Europa precisam ser planejadas imediatamente, de modo a fornecer abrigo constante da solução final que estamos contornando nos dias de hoje.
Putin corre risco interno? A extensão do conflito e as sanções econômicas ameaçam sua sustentação?
Antes de tudo, quem disse que Putin planejava cumprir seus objetivos em dois ou três dias? Quem disse isso fomos nós. Segundo, o povo russo é um povo testado, suportou os piores sofrimentos, a invasão de Hitler, a fome, o frio, crises e mais crises financeiras. E a questão fundamental, a dependência energética da Europa em relação à Rússia, continua intacta. As sanções não tocaram ali. 45% do gás na Europa tem origem russa. 45% do ar quente deste cômodo no qual estamos vem da Rússia, você compreende? Como nos desfazemos disso facilmente?