Domenico De Masi, exclusivo ao DCM: “Esta pode ser a verdadeira 1ª Guerra Mundial”

Atualizado em 27 de março de 2022 às 14:48
Domenico de Masi sentado em um sofá
Domenico de Masi recebe o DCM em sua casa em Roma

“Na Segunda Guerra Mundial, um dos lados dominava a tecnologia atômica, possuía um arsenal relativamente incipiente, que foi usado de modo localizado. Hoje, os dois lados possuem um arsenal atômico que pode destruir toda a humanidade muitas e muitas vezes. Por isso digo que esta pode ser a verdadeira primeira guerra mundial”, diz Domenico De Masi. 

O sociólogo italiano recebeu o DCM na sua casa em Roma. Para ele, um dos autores estrangeiros mais vendidos no Brasil, estamos à beira do abismo devido a 30 anos de erros. 

“As relações geopolíticas mantidas até agora partiram do pressuposto de que a Europa estava livre do nazi-fascismo graças aos americanos, que a América representa o modelo a ser imitado, que a Rússia representa um corpo estranho à Europa”, afirma. 

“Tudo isso ao invés de levar em conta que a Rússia deu uma contribuição decisiva para a derrota do nazi-fascismo, que o modelo americano também tem defeitos a serem evitados, que a Rússia representa historicamente um país orgânico para a Europa”.

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De Masi, que nasceu em 1938 e garante ter recordações vívidas da Segunda Guerra, chama de loucos os responsáveis por trazer o mundo à esta situação:

DCM: Em paralelo à batalha campal, existe sempre a guerra de narrativas. Diz o ditado que a verdade é a primeira vítima da guerra. A versão russa e a ocidental sobre o conflito na Ucrânia, tanto no discurso oficial quanto em suas respectivas mídias, não poderia ser mais polarizada. Existe espaço para alguma nuance na leitura desta situação?

Domenico de Masi: O continente europeu está passando por uma guerra que corre o risco de se tornar nuclear, e só um louco pode ter desencadeado algo que beira a possibilidade de destruir todo o planeta. Mas os loucos representam uma percentagem considerável da raça humana e, se Putin fosse o único louco em nosso mundo, todos os outros já teriam desmantelado seu arsenal atômico. 

Fato é que as relações geopolíticas estabelecidas nos últimos anos entre a Europa, este louco e o povo que ele representa não conseguiram evitar um resultado tão catastrófico. Portanto, estas relações devem ser profundamente modificadas.

De Masi mostra esboços de obras presenteados pelo grande amigo brasileiro Oscar Niemeyer

E qual deveria ser a postura do Ocidente ou, pelo menos, da Europa ao lidar com a questão russa?

Até a queda dos czares, a Rússia sentia-se intimamente europeia e as interações eram intensas. Então, após a Revolução Bolchevique de 1917, as atitudes dos europeus se polarizaram entre simpatia pela União Soviética por parte da esquerda e hostilidade por parte da direita. Após a Segunda Guerra Mundial, a relação se distanciou de vez e todo o espaço foi ocupado pelos Estados Unidos. 

A aliança atlântica forçou a Europa a fazer sua a geopolítica decidida unilateralmente pelos Estados Unidos, por seu interesse preeminente. Com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, a Europa poderia ter aproveitado o período de evidente fraqueza russa para pôr fim às relações bipolares e essencialmente hostis, substituindo-as por relações multipolares e tendencialmente colaborativas. Ao invés disso, as escolhas europeias nos levaram inevitavelmente ao limiar do abismo que a humanidade nunca havia tocado antes. 

Continuamos repetindo que Putin é louco, mas o fato é que os homens e ferramentas que mobilizamos para neutralizá-lo falharam, embora os gastos militares da OTAN sejam quase 17 vezes maiores do que os da Rússia e seus estados-membros passaram de 12 em 1989 para 30 atuais. Portanto, novas relações geopolíticas na Europa precisam ser planejadas imediatamente, de modo a fornecer abrigo constante da solução final que estamos contornando nos dias de hoje.

Putin corre risco interno? A extensão do conflito e as sanções econômicas ameaçam sua sustentação?

Antes de tudo, quem disse que Putin planejava cumprir seus objetivos em dois ou três dias? Quem disse isso fomos nós. Segundo, o povo russo é um povo testado, suportou os piores sofrimentos, a invasão de Hitler, a fome, o frio, crises e mais crises financeiras. E a questão fundamental, a dependência energética da Europa em relação à Rússia, continua intacta. As sanções não tocaram ali. 45% do gás na Europa tem origem russa. 45% do ar quente deste cômodo no qual estamos vem da Rússia, você compreende? Como nos desfazemos disso facilmente?