A rotina começa cedo na maior ocupação rural do Estado de São Paulo (SP). No acampamento Marielle Vive, 450 famílias se organizam diariamente nos trabalhos da horta agroecológica, no preparo das três refeições diárias para os mais de mil moradores e nas atividades educativas e culturais. Na comunidade, que desde 2018 ocupa uma área na cidade de Valinhos, ninguém passa fome. Há alimentos saudáveis, preservação ambiental, formação, esporte e lazer para crianças e adultos. Mas toda essa organização está ameaçada. A liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe desocupações e despejos durante a pandemia de Covid-19 perde a validade no dia 31 de março. Com a suspensão da medida, 132 mil famílias, incluindo as do Marielle Vive, podem ficar sem moradia.
A angústia com a situação é expressa por Sueli Moreira, uma das coordenadoras da produção agroecológica do território, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Enquanto organiza o plantio em mutirão de 400 mudas de reflorestamento, como ação educativa para a comunidade, ela reflete sobre a possibilidade de um despejo.
“Enquanto o pessoal está pensando se vai poder ficar, estamos aqui planejando o plantio de mudas. O que queremos é nosso direito de sobreviver da terra. Hoje tenho um teto, mas e amanhã? Se houver reintegração, como vai ser? Para onde vou?”.
Diante da gravidade da situação, coletivos, partidos e órgãos do Judiciário como o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) pautaram na justiça a prorrogação da medida. A preservação da saúde de famílias em vulnerabilidade social, somada ao agravamento da crise econômica e da insegurança alimentar no Brasil são os motivos que embasam o pedido.
“Estamos em um grupo de mais de 130 mil famílias sob a mesma ameaça. Só em São Paulo são mais de 40 mil. Precisamos fazer pressão para que o ministro Barroso prorrogue o prazo”, avalia Gerson Oliveira, da direção estadual do MST-SP e acampado do Marielle.
Ele destaca o desenvolvimento que a comunidade trouxe ao local, o que pode ser perdido em caso de despejo. “Essas famílias, que estão há quatro anos construindo suas vidas aqui, propiciando geração de renda e uma série de atividades, correm o risco de reviver as mazelas que sofriam antes do acampamento. São muitos avanços sociais e econômicos que o Marielle Vive conseguiu. É uma barbárie pensar em despejo nesse momento”, aponta.
A proibição dos despejos durante a pandemia foi obtida por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF) por partidos em parceria com a Campanha Despejo Zero. A ADPF, deferida pelo STF, obteve a suspensão dos despejos urbanos até o dia 31 de dezembro de 2021, o que também foi obtido pela aprovação da Lei 14.216, em outubro de 2021.
Com o fim da vigência das normas, o ministro Luís Barroso acatou o pedido de extensão do prazo até 31 de março. Barroso também ampliou os efeitos da ADPF para as áreas rurais. Em sua decisão, ele registrou que a pandemia ainda não havia acabado e pontuou que o agravamento da pobreza “pode ter como consequência o aumento do número de desabrigados.”
Segundo a Campanha Despejo Zero, formada por 175 organizações, movimentos sociais e coletivos, houve um aumento de 602% no número de famílias ameaçadas de perder a moradia entre março de 2020 e fevereiro de 2022. Eram 18.840 famílias entre março e agosto de 2020. Atualmente, são 132.291.
Apesar da proibição dos despejos, diversos estados e municípios desrespeitaram a decisão, ocasionando um incremento de 333% do número de famílias despejadas nos últimos dois anos. São Paulo é a unidade federativa que mais removeu famílias – 6.017.
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Maior acampamento rural de SP está em risco
No acampamento Marielle Vive vivem mais de mil pessoas, dentre elas 230 menores de idade. A comunidade se une para superar dificuldades de acesso à água, energia elétrica e saneamento básico. Em protesto pela conquista desses direitos, um dos acampados foi assassinato por um empresário local, que lançou o carro sobre os manifestantes. Em homenagem à vítima, a Escola Popular do acampamento recebe o nome de Luis Ferreira.
A ocupação foi criada em 14 de abril de 2018, um mês após o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em novembro de 2021, decidiu pelo despejo das famílias, acatando pedido da Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, proprietária do terreno. O MST argumentou que a terra era improdutiva, estava degradada e não cumpria função social.
O proprietário pretende construir um condomínio no local. As famílias do Marielle Vive reivindicam a permanência, baseando-se no fato de que terras que não cumprem uma função social podem ser desapropriadas para a reforma agrária, de acordo com a Constituição Federal.
Fernanda Fernandes Bezerra é uma das acampadas. Grávida de quatro meses, ela já sofreu outros despejos e teme pelo que pode ocorrer caso a ADPF não seja prorrogada. “Por ter passado por dois despejos eu estou preocupada, não só por mim, mas porque estou grávida. A pressão que eles fazem com a gente é de doer. Fico muito preocupada com as famílias. Muitas perderam o emprego com a pandemia. Tem pessoas adoecendo por conta da preocupação de não saber para onde vão”.
Também acampado, Wilson Aparecido Lopes questiona o projeto de construção do condomínio. “Os proprietários querem construir um mega-condomínio, um dos maiores da América Latina, o que com certeza impactaria muito a Serra dos Cocais aqui perto. Seu lençol hídrico abastece Valinhos. Se destruir a Serra, haverá um impacto direto no fornecimento de água da cidade. Hoje Valinhos já compra água de Campinas, imagina se destruir o lençol freático”.
Marielle Vive com teto, alimentação saudável, formação, lazer e cultura
As famílias do Marielle Vive se dividem em setores, como é praxe no MST. São grupos que organizam toda a dinâmica do território. O setor de produção é responsável pela horta, de onde saem alimentos para as refeições, preparadas na cozinha coletiva. O excedente é comercializado em feiras da região, contribuindo para a geração de renda.
Toda a produção é sustentável e de natureza agroecológica, baseada na conservação dos recursos naturais. A agroecologia proporciona alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos, e garante a preservação ambiental da região. Na comunidade também há um cultivo de ervas medicinais. Em 2021, o acampamento recebeu o Selo de Transição Agroecológica da Cooperativa de Trabalho, Assistência Técnica, Extensão Rural e Meio Ambiente (AMATER) e da Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento.
Além da produção agroecológica, há cursos de formação, reforço escolar, alfabetização de adultos, atividades esportivas, culturais e de lazer. Parceiros externos contribuem na programação. Dentre eles, membros da comunidade da Unicamp. Por meio de projetos de extensão e iniciativas voluntárias, estudantes, docentes e funcionários da Faculdade de Educação (FE) realizam a reorganização da biblioteca local e atividades educativas.
A contribuição de profissionais da saúde, dentre eles médicos da Unicamp, também garante o atendimento à comunidade em clínica geral, pediatria, ginecologia, psicologia e psiquiatria. A testagem em massa para a Covid-19 foi outra ação da Unicamp no local.
Além disso, a professora da FE, Fabiana Rodrigues, e o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Daniel Perez, constituíram o Núcleo de Incentivo em Práticas Autocompositivas (NUIPA), órgão vinculado ao Ministério Público do Estado de São Paulo que tem como objetivo a mediação de conflitos. Questões como a falta de acesso das crianças à educação, dificultada pela falta de comprovante de endereço, foram superadas pela mediação.
Um Grupo de Trabalho (GT), formado em dezembro de 2019 por docentes de diversas áreas do conhecimento, também realizou diversas visitas ao acampamento. O intuito era contribuir para o bem-estar das famílias e para o planejamento do território. A diretora da Diretoria de Direitos Humanos (DEDH) da Universidade, professora Silvia Santiago, destaca os avanços que a comunidade realizou na área ocupada.
“Identificamos várias potencialidades humanas e de transformação. Um local que estava completamente degradado foi transformado em uma área produtiva do ponto de vista agrícola, além de nascentes que foram refeitas. Mas o mais importante foi testemunhar a dignidade das pessoas ao contribuir para o meio ambiente. O acampamento é uma riqueza para a cidade de Valinhos e para seu entorno”.
Unicamp apoia a permanência do acampamento
A Unicamp, por meio da DEDH, enviou no dia 28 de março um ofício à juíza da primeira instância de Valinhos, Bianca Vasconcelos. O documento destaca o apoio da Universidade à permanência das famílias. “A Unicamp se manifesta a favor do reconhecimento pela sociedade civil e pelas instâncias jurídicas cabíveis, do direito dessa comunidade permanecer onde está atualmente, além de sua transformação numa comunidade, o que certamente contribuirá para a justiça social, para a preservação do meio ambiente e para a construção de um país melhor”, frisa o ofício.
O documento também pontua que o acampamento é formado por trabalhadores em condição de vulnerabilidade social que, com a sua organização, garantem moradia para centenas de famílias. “Além de espaço de moradia e produção, a comunidade possui uma série de atividades na perspectiva de melhorar as condições de vida, proteger o meio ambiente e possibilitar acesso à educação, cultura e à construção de uma vida digna”.
Diante do término do prazo da ADPF, a DEDH pede que sejam considerados os direitos sociais das famílias e “que seja garantida a Câmara de Mediação para dialogar em caso da execução da reintegração de posse com a participação de representantes do Acampamento”.
Além da prorrogação da ADPF, políticas públicas habitacionais são urgentes
O direito à habitação é estabelecido pela Constituição Federal, que também garante a desapropriação de imóveis e terras que não cumpram a função social. No entanto, o país enfrenta um déficit de 5,8 milhões de moradias. A legislação brasileira também assegura a reforma agrária e a desapropriação de imóveis sem função social, medida raramente colocada em prática.
O Brasil tem uma das maiores concentrações de terras do mundo. As grandes fazendas de monoculturas para exportação fazem o uso massivo de agrotóxicos. Também é o país que mais utiliza defensivos químicos, situação agravada por medidas do governo federal, que ampliaram as substâncias permitidas. Ainda, tramita no Congresso um projeto que pode expandir ainda mais o uso dos agrotóxicos.
A insuficiência de políticas habitacionais e da reforma agrária, além do aumento da pobreza, vem se refletindo negativamente de várias formas. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indica que a população em situação de rua aumentou 139% entre 2012 e 2020. A insegurança alimentar já é a realidade de mais de 110 milhões de brasileiros. Isso segundo estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Desses, 20 milhões dizem que passam mais de 24 horas sem comer.
Na contramão do aprofundamento da crise social e econômica, há muitos projetos como o Marielle Vive, que se organizam e propiciam o que o Poder Público negligencia. Garantir sua sobrevivência é urgente para as milhares de famílias em situação de vulnerabilidade.
(Publicado originalmente no site da Unicamp)