Para os franceses de esquerda que votaram em Mélenchon ou Jadot no primeiro turno tentados pelo voto Le Pen no segundo, dá na mesma que votar no presidente Emmanuel Macron. Mas para nós, estrangeiros do Sul global, um beco sem saída se anuncia se a extrema direita for eleita. Para mim, latino-americano, jornalista, à esquerda, um doutorando, os elementos estão reunidos para um horizonte de exclusão.
Saúde
Caso a filha de um negacionista do holocausto seja eleita, uma das primeiras preocupações é a saúde. Num eventual governo de preferência nacional, continuaremos a ter acesso ao sistema público? Seu programa não diz nada de preciso, mas para quem quer economizar despesas do Estado excluindo milhões de estrangeiros, ficam poucas dúvidas.
Para nós, os estrangeiros que dependem dele, a exclusão significará que viver será ter medo de adoecer. Sem solidariedade, estarei mais exposto à morte. Estaremos.
Educação
Le Pen também é uma ameaça múltipla para o caráter público da educação para nós. Seu programa quase nada diz sobre o ensino superior. E o que diz é uma clara ameaça para as ciências humanas e escolas como aquela da qual faço parte, onde o pensamento de esquerda prospera.
“Reforço da exigência de neutralidade absoluta dos membros do corpo docente em termos políticos, ideológicos e religiosos em relação aos alunos que lhes são confiados. Aumento do poder de fiscalização do corpo docente nesse âmbito e obrigação de denúncia dos casos problemáticos sob pena de sanções”. Ou seja, um clima de caça às bruxas.
A neutralidade absoluta é inimaginável, é uma asfixia da produção de pensamento. Concretamente, eu ficaria sem orientador. E sem orientação, é o fim do doutorado.
Mas além da asfixia ideológica, há um horizonte de asfixia econômica. O princípio da igualdade já começou a ser rompido em 2018 pelo governo do presidente Emmanuel Macron.
Ele decidiu aumentar em 1.500% o preço da matrícula nas universidades francesas para os estrangeiros de fora da União Europeia. Uma onda de choque para nós e sobretudo para nossos colegas africanos, que representam metade dos estrangeiros inscritos no ensino superior.
Poucas universidades adotaram a medida. No entanto, não há nenhuma razão para acreditar que Le Pen respeitaria a “autonomia” das universidades, nem que reverterá essa medida. Se sua promessa é parar a imigração, as universidades são um alvo perfeito, sobretudo quando a atual ministra da Educação disse ser um espaço dominado pelo “islamo-esquerdismo”.
Se o aumento do preço da matrícula for generalizado, será o fim dos estudos para estrangeiros como eu.
Imprensa
Enquanto jornalista, estrangeiro, alinhado à esquerda, qual será a liberdade para criticar o poder durante um governo Le Pen?
Se Le Pen apresenta poucas propostas para a comunicação, os sinais que deu para os jornalistas franceses são nefastos: privatização total da comunicação pública e outras formas de hostilidade, como o não credenciamento de jornalistas incômodos.
E para nós, os jornalistas estrangeiros? Já que por diversas vezes ela evoca sua inspiração em modelos de seus aliados do leste, poderíamos considerar o que eles fizeram.
Na Rússia, jornalistas estrangeiros críticos ao regime de Vladimir Putin são classificados como “agentes do exterior”, o que pode resultar em sanções e processos.
Na Hungria, Orbán lançou durante a pandemia uma ofensiva de leis contra jornalistas que difundirem “falsas notícias” ou que atrapalharem os “esforços antipandemia do governo”. Segundo a Repórteres Sem Fronteiras, o objetivo de Orbán é dificultar o trabalho da mídia independente e proteger os oligarcas investigados por ela.
Na Polônia, onde o governo de extrema direita promove uma “repolonização” da mídia, a ONG relata as ameaças das autoridades polonesas de aplicar multas, o uso da força policial e detenções arbitrárias contra jornalistas que cobrem manifestações antigoverno.
Num país onde a Constituição permite ao ou à presidente plenos poderes em caso de “ameaça grave e imediata”, Le Pen poderia se inspirar de todo o “arsenal” de medidas liberticidas de seus parceiros conservadores contra jornalistas estrangeiros.
Numa sociedade onde uma parcela significativa, justamente suscetível à extrema direita, é cada vez mais hostil aos veículos de imprensa, a defesa de jornalistas estrangeiros não será uma prioridade nas ruas.
Nas redes sociais, quando publiquei artigos no DCM apontando as contradições do professor Didier Raoult, alguns internautas franceses já colocavam minha credibilidade em questão.
Com Le Pen eleita, o que os impediria de partir para outras formas de ação?
Incident pendant la conférence de presse de @MLP_officiel : Une femme brandit une affiche en forme de cœur montrant une poignée de main entre Vladimir Poutine et Marine Le Pen, la perturbatrice est immédiatement évacuée par les services d’ordre (BFMTV) pic.twitter.com/13SdZ1lWeT
— Nicolas Malaboeuf (@NMalaboeuf) April 13, 2022
Desemprego e agressão
Entre ocupações instáveis do ponto de vista do Direito trabalhista e pouco remuneradoras, a “preferência nacional” que Marine quer aplicar no mercado de trabalho nos condena ao ostracismo e à pobreza por sermos estrangeiros.
Com a instauração proposta por Le Pen de uma “presunção de legítima defesa para a polícia” num país onde ela é conhecida por ser violenta contra minorias, com uma aparência associada a elas, também sou forte candidato a ser alvo de suas agressões.
Estigma
A destruição definitiva de um Estado universalista já em corrosão e o aprofundamento de uma política de preferência nacional criam mais do que um ambiente de perversão, que nos inflige a sensação de ilegitimidade. A ilegitimidade de ser e estar no mundo.
Diante das desigualdades e injustiças mundiais, o princípio que se sobressai é de que o problema é o nascimento, a origem, a “raça”. Um ciclo perverso de pensamento segundo o qual o mundo é reservado aos fortes e estes o são ou porque nasceram ou porque merecem assim.
Iludidos ou não, os que votarão em Le Pen legitimarão uma velha ordem, racista, colonial, a agonia dos que creem que o mundo lhes pertence. Adoecidos pelo individualismo, esquecem sua história, o Período do Terror e a Colaboração. Quando a barbárie é justificada contra uns, ela termina se voltando contra todos.