Até ontem, o termo finlandização era sinônimo de neutralidade, designava a subordinação da política externa finlandesa ao seu vizinho todo-poderoso. Cunhada durante a Guerra Fria, sob a influência da então União Soviética sobre a Finlândia, a expressão acabou se referindo genericamente à influência que um país poderoso pode ter sobre a política externa de um país vizinho.
Finlandização foi também a solução encontrada por Moscou para manter sob controle os países saídos da desintegração da União Soviética – designados como os “estrangeiros próximos”, e garantir que eles não entrassem na OTAN, nem na União Europeia. Deste grupo de países fazia parte, entre outros, a Ucrânia.
A estratégia geopolítica do Kremlin durou até a guerra de Putin, iniciada em 24 de fevereiro. Ou, se quisermos, até a manhã do dia 13 de maio, quando o presidente finlandês, Sauli Niinisto, e a primeira-ministra, Sanna Marin, anunciaram a mudança do mapa estratégico da Europa: Helsinqui pede a sua adesão “sem demoras”.
O Parlamento finlandês deverá se pronunciar a respeito nos próximos dias. Sua aprovação é tida como certa.
Os finlandeses sempre detestaram o termo finlandização, que tinha uma conotação negativa. Para eles era uma “escolha” de razão, de realismo, de pragmatismo. Ou seja, falta de opção.
Ironicamente, desde ontem, em vez de subordinação, finlandização passou a significar independência ou emancipação, ideia maldita para o Kremlin.
A segunda ironia é que a ruptura da neutralidade finlandesa se deve à invasão da Ucrânia por Vladimir Putin. Em outras palavras, a Rússia provocou o fim da neutralidade.
Em novembro de 2019, o presidente francês Emmanuel Macron comentou que a Aliança Atlântica se encontrava em estado de morte cerebral, sem razão de ser. Na mesma época, Donald Trump anunciava seu desejo de retirar os Estados Unidos da OTAN. No ano passado, nos meses anteriores à invasão, apenas 25% da população finlandesa desejava entrar na organização militar ocidental. Proporção esta que se inverteu desde então. A invasão da Ucrânia aumentou de tal forma as preocupações de segurança que hoje 76% dos finlandeses exigem a adesão à Aliança Atlântica, contra apenas 12% que se opõem. O Partido Social-Democrata, de Sanna Marin, antes abertamente contra a adesão, reuniu-se no dia 8 de maio para deliberou a favor do ingresso na OTAN à unanimidade. Sobre o assunto, o mesmo aconteceu com o governo sueco, que ainda hesitava. O Parlamento recomendou a filiação.
A adesão dos dois países nórdicos à Aliança deverá ser aprovada na próxima conferência de Madrid, no final do mês de junho, apesar da oposição do presidente turco Recep Erdogan, que considera os dois países “albergues de organizações terroristas.”
Como esperado, a reação de Moscou foi extremamente violenta. O vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional e ex-presidente russo, Dmitri Medvedev, declarou que a decisão de Helsinqui e da OTAN abria “um cenário catastrófico”. E que o fornecimento de armas pela organização à Kiev “aumentam a possibilidade de conflito” com o Ocidente.
“Será necessário reforçar o agrupamento de forças terrestres, defesa antiaérea, destacar forças navais significativas nas águas do Golfo da Finlândia. E, então, já não poderemos falar de um Báltico sem armas nucleares. O equilíbrio deve ser restabelecido”, publicou Medvedev na rede Telegram.
Segundo a agência TASS, o conflito poderia então provocar uma guerra nuclear.
Num telefonema entre Niinisto e o Kremlin, Vladimir Putin disse que o fim da neutralidade militar finlandesa é “um erro”.
Inganhável
Moscou garante que em outubro terá o seu novo míssil intercontinental RS-28 Sarmat instalado na base de Krasnoiarsk, na Sibéria. Esses míssil balístico termonuclear superpesado, que a OTAN batizou como Satan 2, com capacidade de transportar mais de dez ogivas nucleares e atingir alvos nos Estados Unidos e na Europa, foi testado esta semana com sucesso.
Mais perigoso que os mísseis em si, é a retórica de Vladimir Putin.
“Esta arma reforçará o potencial de combate das nossas Forças Armadas, garantirá de forma confiável a segurança da Rússia face a ameaças externas e dará o que pensar àqueles que no calor da retórica agressiva tentam ameaçar o nosso país”.
“A perspectiva de um conflito nuclear, antes impensável, voltou agora a ser uma possibilidade real”, afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.
Como diz o analista português José Pacheco Pereira, uma das coisas mais absurdas e preocupantes por parte de Putin é o modo como tem agitado a ameaça da guerra nuclear.
“Não é apenas a guerra nuclear que é absurda e preocupante, é muito mais do que isso: é a facilidade com que se fala dela, porque isso diz muito sobre o grau de desespero de Putin.
Ele sabe perfeitamente que a guerra nuclear é inganhável, sejam quais forem as circunstâncias. Ataquem primeiro ou depois, de surpresa ou com pré-aviso, não há qualquer maneira de obter vantagem num confronto nuclear. E nem sequer a modernização das armas nucleares introduz qualquer vantagem. Mesmo com as armas obsoletas do século XX contra o mais moderno arsenal de 2022, o resultado é o mesmo, aquilo que o acrónimo MAD, Mutual Assured Destruction, descreve desde os anos 50, destruição mútua assegurada. Ou seja, ninguém ganha.”
O britânico Boris Johnson foi o primeiro a reagir ao anuncio da adesão quase certa dos países nórdicos; viajou para Estocolmo e Helsinque para assinar um acordo de defesa, oferecendo à Suécia e Finlândia garantias de segurança, troca de informações militares e exercícios conjuntos.
A definição deve selar o fim da finlandização, um período de quase 80 anos de relativa estabilidade pela força das botas.
A neutralidade no entanto é anterior ao final da segundo conflito mundial. Na Guerra Fria, a finlandização já designava a subordinação da Finlândia à política externa soviética.
O país tem uma história complicada de relação com os vizinhos. Foi uma possessão sueca desde o fim da Idade Média e integrada no Império Russo em 1809. Com a Revolução Russa de 1917, os finlandeses dividiram-se entre conservadores e “vermelhos”, que queriam uma revolução socialista. Venceram os conservadores, que proclamaram a independência em 1919.
No entanto, após a assinatura do Pacto Germano-Soviético, em agosto de 1939, os russos invadiram a Finlândia. O conflito ficou conhecido como a “guerra na neve”, em que os soviéticos encontraram uma resistência inesperada, sendo obrigados a assinar um acordo de paz no ano seguinte, que permitiu a Moscou anexar alguns territórios finlandeses. Mais uma história similar à da Ucrânia atual.
Terminada a 2ª Guerra, ao contrário de outros países, Moscou não impôs à Finlândia um regime comunista, exigiu “apenas” uma submissão da sua política externa e uma rigorosa neutralidade perante os dois blocos da Guerra Fria.
Este acordo tácito permitiu à Finlândia, com os seus 1.340 quilômetros de fronteira comum, conservar a sua independência e o regime democrático, mas subordinou as escolhas de política externa aos desejos da potência dominante.
Concretamente, Helsinque recusou as ajudas do Plano Marshall, não aderiu à OTAN nem ao Mercado Comum. Só depois da desintegração da URSS começou a adesão às instituições europeias: à União Europeia, em 1995, e à Zona do Euro quatro anos depois. Mas se negou a aderir à Aliança Atlântica, mantendo a neutralidade, aprovada então pela esmagadora maioria da população.
Foi preciso a invasão da Ucrânia para fazer os finlandeses mudarem de opinião. Todo o crédito vai para uma só pessoa, o ditador russo Vladimirovich Putin.