STF de novo sob ataque: agora querem aumentar o tamanho da goleira! Por Lenio Luiz Streck

Atualizado em 11 de outubro de 2022 às 22:12
Supremo Tribunal Federal. Foto: Reprodução

Publicado originalmente em “ConJur”

Faz alguns anos, preocupada com a falta de gols, a Fifa propôs o aumento do tamanho das goleiras. À época, escrevi-lhes uma carta propondo uma variável: a proibição de os goleiros terem mais de um metro e meio. Além de aumentar o “episódio-gol”, faríamos uma reserva de mercado para baixinhos ou pigmeus.

Pois agora o atual vice-presidente da República, eleito senador, secundando o presidente Bolsonaro, diz que seria bom enquadrar o Supremo. Isso também foi dito pelo líder do governo, Ricardo Barros.

E como se “enquadra” o Supremo na linguagem governista? Aumentando a goleira, quer dizer, o número de ministros. Em uma tacada. Em eventual próximo governo.

Para quê? Para dar goleada. Ganhar fácil. Sua tese não tem votos suficientes? Aumente o número de votantes. Perfeito.

Quais os problemas nessa proposta? Vários. Explico em vários pontos. Vamos lá.

1. Não é proibido, em tese, aumentar o número de ministros de Tribunais. O problema é como e em que circunstâncias. E o motivo claro de instrumentalização.

2. Nos EUA, Roosevelt ameaçou fazer isso nos anos 30 do século XX. Estava no New Deal e a US Supreme Court, de composição ultraliberal, bloqueava as medidas de welfare state — história conhecida de todos. Esse impasse político durou mais de cinco meses, até que dois juízes se aposentaram.

3. O engraçado é que lá Roosevelt queria aumentar a Corte porque ela era excessivamente auto restritiva; aqui, Bolsonaro quer aumentar porque a Corte é interventiva (pelo menos na opinião dele). “O Supremo é ativista demais, vamos aumentar o número de ministros”. A lógica já derruba a tese.

4. Disse Bolsonaro que seria bom aumentar para 15 ministros; diz que hoje ele lá já teria dois; mas se o STF “baixar a temperatura”, fica assim. Afinal, se ele vencer o referendum que vem aí dia 2, ele colocará mais dois ministros. O que é isto — “baixar a temperatura”? Preocupa-me o termômetro bolsonarista.

5. Falar assim é uma ofensa aos ministros postos por ele. E é uma ofensa aos próximos que porventura possa indicar. Uma Suprema Corte é mais do que isso. Não é uma câmera política em que se faz maiorias contra minorias. Ora, quer dizer que os indicados seriam ministros “do Bolsonaro”? Do governo? Rasgamos de vez até a ideia de que o Judiciário controla a política e não o contrário? Decisões do STF são decorrentes de um placar?

6. Por que esse assunto empolga tanto? Porque o segundo pós-guerra trouxe uma nova configuração dos Tribunais no mundo democrático. A Constituição “virou” norma jurídica. Constituição normativa; (até mesmo) dirigente; compromissória. Os tribunais se tornaram fiéis das democracias (essa discussão dos diálogos institucionais ainda hoje é infindável).

7. Porém, o que se tem é que, com o alto grau de autonomia assumida pelo Direito (Constituições normativas), dizer por último o que diz esse Direito é ter o poder terminal. Daí a “peleia” pelos Tribunais Constitucionais (no Brasil, o STF tem essa função, aliada a outras). Veja-se, a propósito os maus exemplos da Venezuela, Turquia, Polonia, Hungria, Rússia. O guardião da Constituição passa a ser o presidente-que-nomeia-os-ministros. Percebem o sarcasmo da história (lembrando o debate Kelsen-Schmitt)? Ironicamente, risco de “venezuelização”, pois não?

8. Há uma variável que deixa mais séria a “questão brasileira”: o STF foi demonizado pela extrema-direita. Isso é fato. Passeatas contra o STF, a favor do estado de sítio, pela volta do AI-5 (sic), impeachment de ministros, prisão de ministros e quejandices quetais. Até mesmo ataques com fogos foram feitos. Bom, isso fez com que, na falta do Ministério Público, o STF abrisse o famoso inquérito. E aí se disse: “STF autoritário!”. Claro: e queriam o quê? Que o Supremo já fechasse as próprias portas sozinho? Queriam que o presidente da Corte fosse pessoalmente comprar os fogos?

9. Veio a pandemia. E o STF teve que agir. E aí aumentaram os ataques. O STF seria ativista “demais”. Mesmo gente pretensamente ilustrada passou a criticar o STF. Sequer fizeram a diferenciação entre ativismo e judicialização. No Brasil é uma teimosia epistêmica.

10. Para um monte de gente, qualquer decisão do STF da qual discorde vira “ativismo”. Ocorre que, sim, ativismo é sempre ruim. Porém, qualquer tribunal do mundo faz judicialização. Que é outra coisa. Judicializar faz parte da democracia. Mas aqui no Brasil não adianta. Lá vem o palestrante e o articulista para dizer: esse supremo ativista. De há muito as faculdades de Direito têm formado reacionários. E jamais explicaram adequadamente a diferença entre ativismo e judicialização. Epistemologia do fascismo. Teoria política do poder.

11. Vamos lá. Claro que o STF faz ativismo. E quando o faz, erra. Mas se não soubermos a diferença entre ativismo e judicialização estaremos apenas jogando conversa fora. Como já escrevi mais de vinte textos (por exemplo, aqui, e aqui), não vou explicar aqui a diferença. Só quero dizer que, se há bons exemplos do que seja judicialização, são as decisões durante a pandemia. Isso irritou os negacionistas brasileiros. Hoje você chega no açougue e, em vez de o açougueiro puxar assunto sobre se vai chover, ele tasca: “– e esse Supremo, hein doutor? Tem de fechar. Tudo comunista”. Ah: no elevador é a mesma coisa. O “puxa assunto chato” é “e esse Supremo, hein“. Virou fácil bater no STF. Tem crítica a gosto do freguês. Bom, depois que o presidente xinga os ministros, chama ministro de canalha e outros epítetos, esperar o quê do açougueiro aqui do bairro? Como dizia o Conselheiro Acácio, as consequências sempre vêm depois.

12. O STF tem sua conta de débito, é claro. Sua adesão inicial ao lavajatismo ajudou a criar esse imaginário reacionário da antipolítica. No fundo, o STF ajudou nisso.

13. Porém, houve um momento em que o STF se deu conta de que poderia ser a próxima vítima do, digamos assim, anti institucionalismo do lavajatismo. Da antidemocracia. Da antipolítica. Ainda bem. Percebeu a tempo os riscos da antipolítica. Do antidireito.

14. Porém, quando se ouve e lê que novos senadores querem “enquadrar” o STF, falando em impeachment e aumento do número de ministros, dá a impressão que o “dar-se conta” do STF pode ter chegado tarde, na hipótese de Bolsonaro vencer o referendo que se aproxima.

15. Daí a pergunta: os ministros eventualmente indicados vão se deixar insultar assim? Vão aceitar o papel de que são membros não da Corte, mas “do governo”?

Numa palavra: achamos o STF político demais, então vamos mesmo politizar de vez. É brilhante. Mas como esperar que faça sentido a tese de formados em ciência política pelo WhatsApp University?

De minha parte, como amicus da Corte, tenho sempre defendido que devemos formar bons jogadores, para ficar na metáfora ou alegoria do tamanho da goleira do futebol. Se há bons goleiros que impedem mais gols, o ônus é formar bons atacantes. Jogar bem e dentro das quatro linhas. Seguir as regras. Que não são as quatro linhas desenhadas pelo árbitro. Com isso, não precisaremos nem aumentar o tamanho das goleiras e nem proibir que os goalkeepers tenham mais de um metro e meio.

Post scriptum: ainda Abraão e a Constituição

O leitor Wremyr Scliar me remeteu belo comentário sobre minha coluna sobre Abraão e os 34 anos da Constituição. É tão bonito que aproveito para encaixar com o próprio texto acima.

Certeiro como sempre e maravilhosa a citação de Óz a respeito do Gênesis.
Os Juízes e Reis não podiam fazer leis: elas já estavam dadas e obrigavam a todos.
Samuel: se quiseres um rei, escolhas (democracia) um entre teus irmãos (igualdade); que não colecione ouro nem prata, cavalos e camas de marfim ….tenha essa lei, a estude e cumpra (república).
Segundo Philon, os gregos e romanos copiaram, mas tinham vergonha de reconhecer.

Obrigado, Wremyr!

Participe de nosso grupo no WhatsApp, clicando neste link

Entre em nosso canal no Telegram, clique neste link