Impedido de votar por morar nos Estados Unidos e manter o título de eleitor no Rio de Janeiro, me enfiei numa sala escura no último domingo. Por ocasião do Festival de Cinema de Nova York, consegui pegar uma concorrida sessão de ‘Dois dias, uma noite’, novo filme dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne.
Apresentada pelos próprios diretores e pela protagonista, Marion Cotillard, a exibição me lavou a alma e me deixou com muito para refletir durante o resto do dia em que o Brasil escolhia seus representantes nas urnas.
Os Dardenne começaram fazendo documentários nos anos 70 e migraram para a ficção no começo da década de 90. A dupla chamou a atenção com ‘A promessa’, de 1996, e levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1999 com ‘Rosetta’. Desde então, a cada três anos lançam uma nova obra premiada em Cannes. ‘O filho’, de 2002, e este último, ‘Dois dias, uma noite’, levaram os prêmios do Júri Ecumênico; ‘A criança’, de 2005, deu aos dois mais uma Palma de Ouro; ‘O silêncio de Lorna’, seu filme seguinte, foi escolhido na categoria roteiro; e ‘O garoto de bicicleta’, de 2011, recebeu o Grande Prêmio do Júri, o segundo mais importante da mostra.
Cronistas dos personagens descartados da sociedade, o duo desenvolveu a ideia para esta última pérola quando as consequências da crise econômica de 2008 começaram a aparecer mais claramente na Bélgica.
O enredo do filme pode ser resumido em uma frase: depois de seus colegas votarem por sua demissão em benefício de um bônus de mil euros, a operária Sandra (Cotillard) tem um fim de semana para ir atrás deles e convencê-los a mudar de ideia na nova votação que acontecerá segunda-feira. Luc conta, no bate-papo após a sessão, que leu num livro o caso real de uma pessoa que perdeu o emprego depois que a empresa ofereceu aos trabalhadores a escolha de manter o companheiro ou levar um bônus pra casa.
São muitas as camadas para se pensar sobre este filme, assim como sobre a obra dos Dardenne em geral. Sempre contando histórias da classe trabalhadora, os dois são considerados herdeiros do neorrealismo italiano também por seu estilo naturalista. Toda a simplicidade de sua proposta se traduz em refinamento e busca pelo essencial da linguagem cinematográfica. Os dois quase não usam trilha sonora, a não ser quando realmente querem marcar uma passagem da narrativa.
Em ‘Dois Dias, uma noite’, a música aparece basicamente no rádio do carro, e nos dois momentos em que se faz presente, é para marcar a mudança no estado de espírito da protagonista. É de se notar ainda a atenção especial que dedicam à composição de quadros e ao uso das cores. Num desenvolvimento da movimentação da câmera, de repente nos vemos assistindo a uma cena numa sala toda azul, ou com uma parede de tijolos vermelhos ao fundo, às vezes com personagens emoldurados num simbolismo do momento em que se encontram, ou diante de um muro dividido que também ressalta o tema da cena.
Jean-Pierre e Luc filmam sem alarde, num estilo autoral com poucos cortes, planos-sequência longos, porém dinâmicos, e um trabalho fenomenal de direção de atores, com cada personagem deixando sua marca, ainda que com pouco tempo de tela.
Também após a sessão, Marion Cotillard – uma excelente atriz que alterna trabalhos na Europa com grandes produções nos EUA – disse que colaborou com muitos diretores com quem pensou que teria uma conexão especial, o que de fato não se realizou. E quando pensava que isso simplesmente nunca aconteceria, trabalhou com os irmãos belgas, na melhor experiência de sua vida como atriz: “A liberdade era tamanha que eu sentia que poderia fazer qualquer coisa.”
Em ‘Dois dias, uma noite’, a luta de Sandra, casada e mãe de dois filhos pequenos, é também uma luta por sua vida. Quando recebe a notícia de sua demissão, ela ainda se recupera de uma profunda crise de depressão que a colocou de licença médica. Tanto os diretores quanto a personagem principal – e consequentemente, o público – entendem a razão dos que votaram pela exclusão de Sandra. E enquanto ela bate de porta em porta para convencê-los a mudar de voto, a tela se povoa de tipos humanos. Especialmente em tempos de crise, todos têm seus motivos.
O que finalmente me traz de volta à discussão sócio-política trazida pelos Dardenne. Sem usar um discurso panfletário, os dois estabelecem o espelho de um sistema político e social. E no dia em que uma eleição no Brasil alcançou 27% de votos brancos, nulos e abstenções (como a minha), a maior porcentagem desde 1998, assisto o diálogo da protagonista ao telefone com o primeiro colega abordado: ‘Abster-se não é o bastante, desculpe. Eu preciso que você vote por mim’.
Ela acaba sabendo ainda que um superior teria colocado medo nos trabalhadores, dizendo que alguém teria que ser demitido eventualmente. Impossível não pensar no medo usado por mais de um lado na campanha eleitoral em 2014. ‘Antes ele do que eu’, é o que diz o capital.
Num país ainda assombrado por pragas como o classismo, o racismo, a homofobia e a maior delas, a desigualdade social, como não refletir diante de um filme que discute o coletivo e o individual num sistema que lança pessoas umas contra as outras num ‘salve-se quem puder’? E que ainda estabelece como redenção para a protagonista o direito de se defender, de se expressar e de decidir seu destino? Perco a conta de quantos dos visitados por Sandra se defendem, dizendo que ‘não é culpa deles se lhes foi colocado para escolherem entre ela ou o bônus, é o sistema’.
Argumentam ainda que ‘não votaram contra ela, mas a favor deles’. Sim, todos têm suas razões. Mas ao mesmo tempo, ninguém pode escapar de suas escolhas. E quer queiram, quer não, numa disputa de interesses, assim como na luta de classes, quem não está de um lado está de outro. Questões muito relevantes, especialmente pra quem acha que política só se faz na capital federal ou no dia da eleição. Política se faz todo dia. E toda noite.