Por devana babu, de Brasília
Após as recentes declarações de Jair Bolsonaro (PL), insinuando que meninas venezuelanas vistas por ele em São Sebastião, no DF, estariam se prostituindo, o clima na comunidade é de medo e desconfiança em relação à exposição e ao assédio político causados pelo presidente.
Mas também há muita solidariedade, apoio mútuo e espírito de luta para combater o prejuízo provocado pelas declarações do mandatário.
Em um grupo de articulação das venezuelanas de São Sebastião no Whatsapp, chamado Guaramo Solidário, uma das lideranças publicou uma mensagem que reforça a união entre elas para superar as diversas dificuldades que vêm passando no país.
As participantes são orientadas a não se sentirem intimidadas por pressões ou bullying, realçando a existência de uma rede de proteção de lideranças comunitárias e instituições parceiras que vêm apoiando os refugiados.
“Estamos juntas! Confiança, fé. Sabemos que são lutadoras dedicadas ao bem de suas famílias e vieram aqui para superar todo tipo de pobreza, com confiança em Deus e dispostas a superar todas as limitações, intolerâncias e incompreensões humanas. Tudo isto também passará e venceremos todo tipo de xenofobia, aporofobia, classismo e machismo”, diz um trecho da mensagem.
Guaramo, a propósito, é uma expressão venezuelana que significa “vontade para fazer as coisas”. Outro trecho da mensagem exemplifica bem o espírito da palavra: “Deus abençoe todas nós e nossas famílias, alimentadas e educadas no Brasil com o esforço do trabalho digno e dignificante, em clima de chuva ou seca, em qualquer estação do ano! Vivan las hermosas mujeres venezolanas dentro y fuera de la patria! Orgullosas, altivas, bonitas, SIEMPRE ARREGLADAS, que podemos salir ARREGLADAS qualquer dia de la semana o.permanecer ARREGLADAS en casa porque ASI NOS ENSEÑARON NUESTRAS MADRES Y ABUELAS (‘Viva as formosas mulheres venezuelanas dentro e fora da pátria. Orgulhosas, altivas, bonitas, sempre arrumadas. Podemos sair arrumadas qualquer dia da semana, ou permanecer arrumadas em casa, porque assim nos ensinaram nossas mães e avós’, diz o trecho em espanhol).”
A repetição da palavra “arrumadas”, sempre em caixa alta, faz uma clara referência à expressão utilizada pelo presidente ao se referir ao encontro com as meninas venezuelanas na cidade da periferia de Brasília: “Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas no sábado numa comunidade, e vi que eram parecidas. Pintou um clima, voltei. Posso entrar na sua casa?, entrei. Tinha umas 15, 20 meninas sábado de manhã se arrumando. Todas venezuelanas. Aí eu te pergunto, menina bonitinha se arrumando sábado de manhã para quê? Para ganhar a vida.”
Outra mensagem do grupo Guaramo Solidário reforça a indignação com a fala e ressalta o caráter cultural do zelo das mulheres venezuelanas com a aparência, confrontando as conclusões precipatadas do presidente:
“Assim é a nossa cultura. Sair arrumadas para a padaria e o supermercado, para a escola ou para o trabalho. Para nós, a pobreza não é inimiga de sabonete, pente, agulha, linha, batom, rímel ou esmalte. Que não nos confundam. Podemos ter orçamentos limitados, mas nunca andamos desalinhadas, malcheirosas ou descuidadas com nossa imagem pessoal. Assim somos as venezuelanas, justas e corajosas quando temos quer ser para defender nossa dignidade e nossa família onde quer que estejamos! Vamos respirar fundo e aprender a nos organizar com respeito para superar qualquer tipo de mal-entendimento, desvio e manipulação.”
Mulheres trabalhadoras
Em entrevista ao DCM, uma das venezuelanas integrantes do Guaramo Solidário, que não quis se identificar por razões de segurança, afirma ter ficado surpresa com as insinuações do presidente, e confirma que no dia da visita relatada por ele estava ocorrendo uma ação social no local.
“Nessa casa, nesse dia, foi uma jornada de corte, secador e chapinha de cabelo só para mulheres. Porque frequentemente fazem para meninos e homens. Não estavam só moças, também estavam senhoras idosas, meninos acompanhando, crianças, os estilistas brasileiros”, conta.
“Em campanha política, sempre aproveitam pessoas vulneráveis para desacreditar. E nós, venezuelanos, temos que ter muito cuidado com isso. Aqui em São Sebastião, os venezuelanos estamos trabalhando, procurando emprego. Não existe mendicidade”, diz a mulher, que é professora universitária e procura trabalho em sua área de atuação. “Bolsonaro, com essa recente declaração, está prejudicando ele mesmo”.
Paulo Morais, diretor da Cáritas, instituição que apoia os refugiados em São Sebastião desde 2018 e tem dado suporte às famílias durante todo o rebuliço causado pelas falas do presidente, afirma que essa população procura garantir sua sobrevivência de formas bem diferentes das insinuadas por Bolsonaro.
“Em São Sebastião, temos a perspectiva de ter quase duas mil pessoas refugiadas, e essa comunidade vive e sobrevive de diárias, de empregos em supermercados, muitas estão com empreendimentos como hamburguerias e lanchonetes, muitas são também costureiras. Em nenhum momento tivemos conhecimento sobre pessoas se prostituindo, crianças ou adolescentes, nem adultos”, afirma.