Por Cristiane Sampaio
O cenário que se delineou no jogo eleitoral do país no último mês fez com que a figura de Lula (PT) se tornasse a opção mais viável para abrigar tradicionais forças da direita liberal diante do avanço do bolsonarismo e da consequente polarização. É o que avalia a pesquisadora Carla Teixeira, do curso de doutorado em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que acompanha com atenção o desenrolar da atual corrida presidencial.
Espremidos entre os movimentos pró-Bolsonaro e pró-Lula, personagens do PSDB, do MDB e do establishment que os acompanha na agenda econômica acabaram buscando uma boia de salvação no alinhamento democrático à candidatura do petista. Para a pesquisadora, o atual xadrez político revela uma configuração que complica a vida dos direitistas convencionais que tanto proclamaram a busca pelo chamado “centro democrático” nos últimos anos.
“Eu acho que a esta altura o próprio Lula se tornou o centro democrático. Em momento nenhum ele fez um discurso radical de esquerda. E talvez seja por conta dessa característica moderada do Lula que o centro democrático tenha sido esmagado pelo bolsonarismo, porque esses grupos liberais costearam demais o alambrado do golpe, a ponto de se confundirem com aquilo”.
O contexto atual é embalado ainda pelo gosto amargo que PSDB e MDB experimentaram este ano nas urnas nas eleições de nível federal. O primeiro, que elegeu 29 deputados federais em 2018 e hoje tem uma bancada com 22 membros, terá apenas 13 parlamentares na Câmara a partir de 2023.
A sigla não teve candidato próprio a presidente e se aliou oficialmente ao MDB, que lançou Simone Tebet com uma vice tucana, a senadora Mara Gabrilli. O MDB conseguiu ampliar a bancada de deputados de 37 para 42, mas a chapa terminou a corrida com o magro percentual de 4,2% dos votos.
As duas siglas já vinham perdendo espaço no Legislativo federal desde 2018, quando os tucanos reduziram o quadro na Câmara dos Deputados de 54 para 29 integrantes. Com isso, o partido saltou de terceira maior bancada eleita em 2014 para a nona posição. Já o MDB foi o que mais reduziu de tamanho na Casa, caindo de 66 parlamentares para 34 eleitos em 2018.
Nomes
No início deste mês, o PSDB decidiu nacionalmente que não fecharia questão sobre um candidato específico à Presidência da República. Com isso, liberou os filiados a escolherem seu destino. Em São Paulo, berço mais imperioso do tucanato, a maioria do diretório estadual declarou apoio a Lula, em um movimento que destoa da rivalidade histórica, de quando o PSDB era tido como o principal adversário político e eleitoral de Lula e do PT.
Um dos destaques é a postura do ex-senador Aloysio Nunes, figura de realce entre os medalhões da sigla, que já vinha dando sinais de escolha pelo petista ainda antes do primeiro round nas urnas. Em agosto, ele chegou a participar de um comício lulista no Vale do Anhangabaú, em São Paulo.
“Acho importante a vitória do Lula, não apenas para derrotar Bolsonaro, cujo governo eu considero um desastre de todos os pontos de vista, mas também porque precisamos de um presidente mais sensível ao grande drama da desigualdade do país”, acenou, ao afagar o petista.
O ex-presidente do PSDB e atual senador Tasso Jereissati (CE) também ajuda agora a engrossar o coro do voto pró-Lula, tendo declarado o posicionamento no último dia 3. Um pouco mais tardio, mas não menos direto, Fernando Henrique Cardoso é outro nome do tucanato que decidiu manifestar apoio ao ex-metalúrgico.
No primeiro turno, FHC não havia indicado alinhamento a algum nome específico, mas publicou nota defendendo voto “em quem tem compromisso com o combate à pobreza e à desigualdade, defende direitos iguais para todos” e, entre outros pontos, o “fortalecimento das instituições”. Agora, com a chapa PSDB-MDB fora da disputa, o ex-mandatário resolveu ser mais incisivo e, na quinta (27), apareceu em vídeo das redes sociais de Lula pedindo voto no petista.
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O professor Sérgio Simoni, do curso de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vê uma mescla de razões para explicar esse movimento. “Apesar de ter uma trajetória mais de esquerda e de pertencer a um partido desse campo, Lula fez um governo, especialmente o primeiro, de certa forma próximo do que esses caras defendiam, então, eles viram que o Bolsonaro está mais distantes deles do que o Lula.”
“E o Bolsonaro não tem um comportamento agregador, o que faz com que esse grupo recorra a Lula. Além disso, economicamente, o governo Bolsonaro é muito instável, errante, e isso também afasta os setores mais liberais, o que pode, no limite, prejudicar a própria estabilidade da democracia”, acrescenta o cientista político.
No MDB, o destaque nos últimos dias foi o posicionamento de José Sarney, ex-presidente da República e ex-senador, que declarou predileção pela candidatura do PT na segunda-feira (24). Mas, antes disso, o nome de Tebet já vinha despontando como o apoio mais midiático e saliente da ala emedebista a Lula.
Derrotada no primeiro turno, a atual senadora terminou em terceiro lugar na disputa, à frente do concorrente veterano Ciro Gomes (PDT). Durante a campanha do primeiro turno, ela teve participação de destaque nos debates, o que fez com que saísse da corrida com um capital político maior do que entrara. Crítica da postura de Bolsonaro em relação a diversas pautas, Tebet tem se engajado diariamente no segundo turno, utilizando o capital adquirido até aqui como munição contra o candidato à reeleição. A conduta da senadora tem incentivado outros correligionários a se alinharem a Lula neste momento.
Ressonância
Questionado sobre a força que provocou o deslocamento de atores de direita rumo à campanha de Lula, o professor Carlos Machado, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), acredita que, ao olhar para o MDB, é possível se pensar mais no possível impacto da figura de Tebet em si do que em um raio de influência eleitoral do partido.
Isso porque o MDB, lembra o pesquisador, tem lideranças regionais, mas carece de um grande nome nacional capaz de organizar e coordenar uma atuação mais estratégica da sigla nesse cenário. Essa característica teria ajudado a criar o contexto para que dentro do partido haja tanto líderes que apoiam Lula quanto nomes que se aproximaram mais de Bolsonaro no pleito atual.
“Nesse sentido, a figura dela pode ser mais importante pra estabelecer um convencimento entre atores que estão ainda numa posição indecisa. Talvez ela tenha algum efeito nesse sentido”, projeta o professor, ponderando ainda que, apesar disso, o cenário deixa um rastro de interrogações sobre qual vai ser o real impacto do poder de Tebet no balanço final de votos.
“É uma dúvida muito grande, uma vez que ela não era uma liderança nacional e está se posicionamento desta forma neste momento, nestas eleições. Então, a gente tem pouca base pra poder localizar a capacidade de transferência de votos da Simone Tebet para outras candidaturas”, diz Machado.
Rota
A professora Mayra Goulart, do curso de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta que não é possível interpretar o roteiro que vem sendo seguido pela direita liberal sem observar as cenas que, na história recente do país, precederam esta eleição.
A pesquisadora lembra que Jair Bolsonaro emergiu no cenário político nacional nos últimos anos como um personagem capaz de fazer a ponte entre o antipetismo já consolidado e segmentos populares que, embalados por uma ideologia de direita, também passaram a se orientar pela lógica de rejeição ao Partido dos Trabalhadores.
O resgate feito por Mayra Goulart remonta aos protestos populares de junho de 2013 e seus desdobramentos. Se antes desse marco o antipetismo era uma ideia mais comum às elites econômicas, políticas e sociais, a pesquisadora destaca que, após esse período, o Brasil viu nascer um eco que, entre outras coisas, popularizou essa corrente e ajudou a vitaminar o movimento da antipolítica.
“Isso gera uma crise pra direita tradicional, que precisa de alguma maneira se diferenciar do bolsonarismo caso não queira ser englobada ou diluída no bolsonarismo. Então, ela precisa se diferenciar como de alguma maneira [um ator] diferente do PT, mas também diferente do bolsonarismo.”
A análise da professora se coaduna com o teor de manifestações feitas por alguns interlocutores desse campo que anunciaram apoio a Lula no segundo turno, mas de forma comedida. Foi o que fez, por exemplo, José Serra (PSDB), nome histórico do tucanato paulista. Em uma postagem publicada no Twitter dois dias depois do resultado do primeiro turno, ele declarou voto no petista de forma lacônica.
“Não vou me alongar sobre o tema. Diante das alternativas postas, votarei em Lula. E, pela mesma razão, em São Paulo, meu voto será em Tarcísio de Freitas”, resumiu.
Não vou me alongar sobre o tema. Diante das alternativas postas, votarei em Lula. E, pela mesma razão, em São Paulo, meu voto será em Tarcísio de Freitas.
— José Serra (@joseserra_) October 4, 2022
Em publicação posterior na mesma rede social, ao defender a importância de os brasileiros irem às urnas no próximo domingo (30), Serra também afirmou que “comparecer não significa aprovar os candidatos em disputa”.
Comparecer não significa aprovar os candidatos em disputa, mas legitimar a instituição do voto popular. Compareça, vote com liberdade, vote consciente. Esse é o modo mais efetivo de defender a democracia.
Leia mais no meu artigo de hoje: https://t.co/9YmfhXXEDL pic.twitter.com/O3eVxuvGuo
— José Serra (@joseserra_) October 27, 2022
Adversário histórico do PT, o tucano enfrentou o partido em dois pleitos presidenciais e terminou vencido por Lula em 2002 e por Dilma Rousseff em 2010. Serra é atual senador pelo estado de São Paulo e encerra o mandato em janeiro de 2023 sem cargo eletivo pela frente: ele não conquistou vaga para a Câmara dos Deputados, onde tentava uma cadeira, o que mostra uma perda de espaço político em seu terreno eleitoral, estado que governou entre 2007 e 2010.
O baque de Serra ganha amplitude quando se olha para o raio de frustrações do partido. Nos estados, por exemplo, a sigla também vem perdendo oxigênio. Em 2010, o PSDB emplacou oito governadores, número que caiu para cinco em 2014 e, em 2018, chegou a três. No pleito atual, nenhum tucano se elegeu governador no primeiro turno, embora quatro nomes da sigla ainda disputem o cargo de mandatário estadual no domingo.
Para a historiadora Carla Teixeira, esse segmento da direita liberal tende a ruminar os estragos políticos dos últimos tempos por um período longo. “Eu não acredito que eles se recuperem tão cedo. Eu acho que vai ter aí um processo de pelo menos uma década, porque vai ser preciso construir novas lideranças, isolar o bolsonarismo, e isso não é uma coisa que acontece do dia pra noite, principalmente quando se tem o número de parlamentares bolsonaristas que temos agora”, examina.
Nas projeções de Sérgio Simoni, esse desenho político mostra um caminho tortuoso para aqueles que se candidatem a interlocutores do chamado “centro democrático” nos próximos anos. O cientista político pontua que um eventual governo Lula precisará costurar alianças senão com o segmento todo, mas pelo menos com setores do MDB, do PSDB, do Cidadania, entre outros, para assegurar uma “governabilidade razoável”. A formação da tropa tende a ser importante especialmente para sustentar a gestão diante do caráter bélico da extrema direita.
“A gente vai ter que pensar como um centro democrático pode jogar nesse sentido porque, se esses partidos apoiarem Lula, por um lado, isso vai garantir um governo democrático que funcione e não fique à mercê de ameaças da extrema direita, mas, de outro, esses partidos vão diminuir as chances de fazer uma terceira via porque já vão estar aliados a uma das vias. Então, vai ser algo desafiador pra eles.”
Texto publicado originalmente em Brasil de Fato