Por Moisés Mendes
A derrota de Bolsonaro pode não significar o fim do bolsonarismo, mas oferece a chance de reabilitação do sistema de Justiça, que se alienou, se resignou e se submeteu aos desmandos e aos crimes de uma família organizada como quadrilha.
Quatro anos de imposição do fascismo encolheram e acovardaram as instituições, na avaliação de duas figuras que por acaso têm o mesmo sobrenome: Gilmar Mendes e Conrado Hübner Mendes.
Mesmo que percorram caminhos diferentes e reflitam com bases discordantes (Conrado é crítico de Gilmar), os dois citados remetem para a mesma perspectiva que se abre.
As instituições em geral, no que têm de genérico, e o sistema de Justiça, no que têm de particular, terão de dar conta de reparações não enfrentadas durante anos.
O Supremo que não enfrentou a Lava-Jato. O TSE que ignorou as fraudes eleitorais da chapa Bolsonaro-Mourão em 2018. A Justiça de primeira instância que se acovardou para a família e os cúmplices da família.
As autoridades das altas cortes de Gilmar Mendes que não contiveram Eduardo Cunha antes do golpe.
Os omissos, os silenciosos, os que se enfiaram em cantinhos – todos terão de oferecer agora o que se negaram a entregar nesses quatro anos.
É a hora de Bolsonaro se defrontar com instituições que o trataram até com certa cordialidade.
Quando foi para o segundo turno em 2018, o sujeito prometeu, em discurso transmitido para os seus na Avenida Paulista, que faria o julgamento sumário dos inimigos na ponta da praia.
A ponta da praia, que a ditadura usava como cenário para assassinar adversários, é a referência de Justiça do sujeito.
Hoje, a ponta da praia para Bolsonaro e seus milicianos terá de ser representada pela reabilitação das instituições, mas sem que isso signifique algo gasoso e a impalpável.
Reabilitar as instituições significa restabelecer prerrogativas e deveres do Ministério Público e de toda a estrutura do sistema de Justiça.
Significa, pelo que tem de mais singelo, dizer às autoridades, como pede Gilmar Mendes, que elas deixem de se acovardar, porque os ameaçadores perderam.
É uma lista grande. Juízes assustados com o poder de coação de aliados de Bolsonaro, que perseguem jornalistas de forma sistemática. Que temem os filhos do sujeito, os militares, os bandidos da grilagem e da garimpagem.
O MP relapso na vigilância dos crimes da Amazônia. As autoridades submissas à prepotência criminosa de empresários assediadores de empregados.
Todos terão de reagir, inclusive a Procuradoria-Geral da República que trabalha como defesa de Bolsonaro. Não agora, mas mais adiante terá de reagir
Bolsonaro quase acabou com os empregos de todos eles e iria extinguir muitas das atividades essenciais para a democracia se tivesse um segundo mandato.
O sistema de Justiça sabe dessas ameaças, mesmo que esteja com várias partes podres e sem condições de refletir sobre a própria podridão.
As autoridades das quais fala Gilmar Mendes terão de voltar a atuar de forma substantiva, e não só retórica, para sobreviver. As instituições mais do que as autoridades.
“Agentes e instituições que possuem o dever de agir, de proteger o Estado democrático de Direito”, na definição de Gilmar, perderam “o brio necessário”.
Na definição de Conrado Mendes, o melhor analista da relação poder-Justiça, o Supremo é o tribunal onde o cala boca já morreu da ministra Cármen Lúcia “flutua conforme a razão e sensibilidade de cada ministro”.
O Supremo da liberdade de expressão dos poderosos – e que a Lava-Jato quase comeu – precisa tomar a frente na proteção de um sistema de Justiça fragilizado pelo próprio medo e pelo colaboracionismo.
Reconstruir o Brasil é muito mais do que recompor as bases e as relações políticas, em todas as áreas, que irão desafiar Lula.
Se o resgate do Brasil não passar pela vontade de ressureição do sistema de Justiça, nada mais terá sentido, nem mesmo o mais amplo e sólido acordo que Lula possa fazer com todas as forças do país.
A ponta da praia das instituições depende de algo maior do que o brio de promotores, procuradores, juízes de primeira instância, desembargadores e altos ministros das altas cortes.
Depende da coragem que muitos não tiveram para enfrentar o poder da família e dos seus protegidos nesses quatro anos de terror que calaram muita gente.
É mais do que brio o que falta. Numa tradução de maior alcance, falta vergonha na cara mesmo.
Originalmente publicado em BLOG DO MOISÉS MENDES
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