Publicado no Unisinos.
Elas moram em uma casa como qualquer outra em uma rua como qualquer outra com uma minivan Honda na garagem e abóboras, fantasmas e cabeças de esqueleto que enfeitam o pequeno jardim da frente em preparação para o Halloween [dia das bruxas]. Fini, 11 anos, foi, ontem, à loja de fantasias e voltou com um traje de bailarina zumbi e batom preto. Emily, 12 anos, comprou uma fantasia de índia norte-americana. Agora, está tudo preparado para a festa do dia das bruxas. Poucos minutos antes das 6 da tarde, a mãe Becky chega em casa com caixas de pizza do Pizza Hut e elas comem antes de começar uma noite agitada de lições de casa, limpeza, chuveiro e de preparações para ir dormir cedo.
Nada de anormal aqui. Apenas uma típica família americana em uma típica noite durante o ano letivo nos Estados Unidos, com exceção disso: Becky é casada com Marianne. Fini e Emily têm duas mães.
A mãe Marianne é, na verdade, Marianne Duddy-Burke, diretora executiva nacional da Dignity USA, uma organização que existe há 41 anos, e que trabalha pela mudança nos ensinamentos da Igreja Católica sobre gays e lésbicas.
E, ontem, a família Duddy-Burke teve um dia extraordinariamente bem-sucedido: as duas mães e as duas crianças sentiram suas orações serem ouvidas quando os bispos católicos no Vaticano divulgaram um relatório preliminar pedindo à Igreja para acolher casais homossexuais e os filhos de suas uniões.
“Não temos ilusões de que este documento vai ser a solução de tudo. É apenas um documento provisório. Mas apenas a mudança de chamar-nos de “intrinsecamente más” para esse tipo de linguagem, bem, isso é um sinal significativo”, disse Duddy-Burke, na segunda-feira, em sua sala de estar em Boston.
“Só de imaginar como poderia ser, ter as nossas filhas totalmente incluídas na Igreja, sem ter dúvidas sobre se elas podem ir para a escola católica, se elas podem ser batizadas e receber os sacramentos”, disse ela. Entretanto, quando tudo parece bem, regular e normal, de repente, alguém pode ir até o padre ou bispo local – mesmo aqui em Massachusetts, onde o casamento gay é legalizado – e sussurrar que Marianne Duddy-Burke está casada com uma mulher. E que duas crianças estão vivendo naquela casa profana. E que algo deve ser feito.
“Nós chamamos essas pessoas de ‘snipers‘ [franco-atiradoras]”, disse Duddy-Burke ao se referir aqueles que preparam as emboscadas. Ela viu as suas vítimas muitas vezes. Parceiros que declaram seus parceiros em um obituário. De repente, eles são demitidos de um emprego que tinham na Igreja. E tem os funerais – como o do pai de um amigo próximo, em Massachusetts – onde o padre anunciou antes da comunhão: “Os gays não devem se apresentar para receber a Eucaristia”. Então a filha do homem morto permaneceu em seu banco, abandonada e humilhada. Duddy-Burke viu ministros voluntários da Igreja convidados a retirar-se do ministério, incluindo um jovem gay que escreveu em sua página no Facebook sobre ir a um evento do Dignity USA.
A associação Dignity opera diversos programas e serviços semanais para gays e lésbicas e suas famílias que permanecem na Igreja Católica, mas sentem que não podem por causa do preconceito flagrante contra eles ou pior, contra seus filhos. Em Boston, a “Missa da Dignidade”, como eles chamam, acontece todos os domingos na Igreja de São João Evangelista. Sacerdotes que apoiam a causa e, às vezes leigos, presidem a celebração.
Duddy-Burke não acha que o documento do Vaticano de ontem vai encerrar o trabalho do Dignity USA. “O Vaticano nunca tinha dito nada de positivo sobre as relações do mesmo sexo”, disse ela. “E neste documento, eles estão louvando o compromisso de longo prazo e o seu caráter sacrificial. Eles estão dizendo que os direitos e as necessidades das crianças devem ser primordiais”.
Ontem, as suas filhas disseram que a sua família não é diferente de qualquer outra. “Um dos meus amigos mais próximos tem duas mães”, disse Emily. “Outro amigo, que é educado em casa, tem duas mães, também. É normal”.
Marianne Duddy-Burke é a mais velha de quatro meninas em uma devota família de Nova Jersey. Estudou sempre em escolas católicas. Ela era a mais jovem leitora da sua paróquia, a salmista mais jovem. Durante a maior parte do ensino médio, ela ia à missa diariamente com as freiras e ajudava um capelão cego a servir o altar. Na faculdade, ela foi presidente do Newman Center, um grupo universitário católico, até que “o capelão de alguma forma ficou sabendo que eu era lésbica. Ele me perguntou sobre isso. Eu disse: ‘Sim, eu sou’. Ele disse: ‘Nós não podemos ter alguém como você representando os católicos no campus’, e me fez sair do grupo. Fiquei arrasada, sem uma comunidade”.
Mais tarde, ela encontrou uma nova comunidade com o Dignity. Ela conheceu Becky, convertida ao catolicismo e ex-freira, na Missa da Páscoa. Quando elas decidiram adotar, elas primeiro tentaram através da Catholic Charities [equivalente a Caritas nos EUA]. Mas foram rejeitadas porque elas eram gays. Elas finalmente fizeram o processo de adoção através do Departamento de Crianças e Famílias do Estado de Massachusetts.
“Lembro-me de quando, assim que Emily chegou à nossa casa, mas ainda não tinha sido adotada, o Vaticano começou a dizer que colocar crianças com casais do mesmo sexo estava causando violência”, disse Duddy-Burke. “Isso foi no meio do escândalo de abuso sexual. Eu pensei: ‘O que temos de violento? Nós somos apenas uma outra família”.
Enquanto comia sua pizza de queijo na noite de ontem, Fini Duddy-Burke disse que ela entende o que a mãe diz: ela é apenas mais uma criança em mais uma família que está super animada, antecipando o dia das bruxas. Se ela tivesse uma chance, ela diria ao Papa Francisco ela mesma. “É bom ter duas mães. Elas são as melhores. E nós as amamos”, disse ela, mesmo quando “elas gritam com a gente”.