Se existe alguém para quem a eternidade sempre esteve assegurada é Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. É nosso santo redentor. O verdadeiro salvador da autoestima nacional, um homem que provou que o brasileiro podia ser genial, mais do que apenas viável, mas criativo e altamente eficiente. E isso sem perder a emoção e a ternura. “Love, love, love”, disse, em 1977, quando se despediu do futebol, antes da última partida usando a camisa do Cosmos, de Nova York, contra o Santos, os dois únicos times cujos mantos trajou.
Pelé é uma fonte inesgotável de amor e não me venham falar de seus pecados. Seu sorriso permanente, o compromisso com a vitória e a alegria de viver nos levou à plenitude, a um momento de exuberância da identidade nacional. Somos o que somos culturalmente, nos definimos para a modernidade, ainda que com a identidade precária, graças a Pelé.
O futebol é fundamental, é definidor, é uma força simbólica da civilização capitalista, que dissimula e ressignifica a disputa de poder global. E ninguém foi tão determinante quanto ele para a vitória do continente sul-americano sobre o europeu (dos colonizados sobre os colonizadores) nesse esporte, que envolve organização, força coletiva, união, técnica, brilho pessoal, tática, estratégia, em suma, desenvolvimento humano. É difícil de acreditar, mas Pelé existiu, existe, fez milagres, redimiu os brasileiros. É quase Jesus.
Fiquei frente a frente com Pelé duas vezes. E só falo desses encontros nesse momento para tentar me elevar, estabelecendo um vínculo oportunista com a santidade. Quero alardear meu rápido contato com o Olimpo. O primeiro foi numa entrevista coletiva no final dos anos 1990 com a fabricante britânica de materiais esportivos Umbro num restaurante no bairro da Vila Olímpia, em São Paulo. Na ocasião, o Santos Futebol Clube assinava um novo contrato de fornecimento de uniformes com a empresa.
Pelé tinha tudo a ver com o novo contrato. Seu prestígio junto aos altos executivos da Umbro facilitou a aproximação entre as partes. Lembro da sensação que tive um pouco antes de encontrá-lo. O lugar estava lotado, com um monte de gente andando para cá e para lá. De repente senti uma vibração que parecia um movimento em torno da colmeia, uma agitação de abelhas, uma energia pulsante.
Soube logo em seguida que Pelé havia chegado. Mais alguns segundos e dei de cara com ele. Falei: “Oi, Pelé”. Sorridente, ele retribuiu o cumprimento. Depois conversamos sobre Ronaldo Fenômeno. Na ocasião, Ronaldo havia acabado de assinar um contrato vitalício com a Nike. Perguntei para Pelé o que ele achava desse tipo de acordo interminável. Ele só me perguntou de volta: “Vitalício?”
A segunda vez que encontrei Pelé olho no olho foi em Manchester, na Inglaterra, quando ele se tornou presidente honorário do Cosmos e houve um jogo amistoso do legendário time americano contra o Manchester United, no estádio Old Trafford. Estávamos em 2011 e o próximo mundial de futebol aconteceria no Brasil. Pelé voltava a ser um garoto propaganda muito requisitado por grandes marcas do esporte.
Fui entrevistá-lo com exclusividade por incumbência da revista Alfa, publicação da Editora Abril. Mais uma vez, por coincidência, se tratava de um projeto de marketing patrocinado pela Umbro, que havia sido comprada pela Nike cinco anos antes e equipava com suas roupas e chuteiras os dois times.
Houve uma entrevista coletiva na qual caçadores de autógrafos se digladiavam na porta de uma antiga fábrica da empresa, onde o evento acontecia, para conseguir uma assinatura de Pelé, marca pessoal que fazia um livro com suas fotos custar 200 libras mais caro. Agora o preço do seu autógrafo vai subir muito.
Entrevistei o mais fabuloso futebolista de todos os tempos, um sujeito afável e consciente de sua grandiosidade, durante 40 minutos na suíte presidencial do Hotel Lowry, em Manchester. Estávamos sob a observação atenta de sua assessora vietnamita, uma moça chamada Theresa Tran, que não largava o relógio. Quem fez as imagens de Pelé durante a entrevista foi o fotógrafo Bob Wolfenson. Tive pouco tempo para a conversa e falei com Pelé sobre seu espírito vitorioso e conciliador.
Falamos sobre o Cosmos, que ele defendeu entre 1975 e 1977, que ele considerava um projeto absolutamente bem-sucedido. Também tratamos da nova agência que gerenciava sua marca internacionalmente. Tudo ia bem. Ele havia sido nomeado pela presidenta Dilma Rousseff embaixador da Copa e emprestava sua imagem para mostrar que seria um evento grandioso.
Também se cogitava que Pelé entrasse em campo ainda que por alguns minutos para disputar uma partida pelo Santos no mundial de clubes, o que ele descartava completamente porque havia o risco de uma derrota, algo que macularia sua carreira. Perder é um verbo que nunca fez parte de seu vocabulário.
Pelé é digno de adoração. Suas façanhas nas copas de 1958 e 1970 foram muito além do futebol. O momento histórico, o contexto político, tudo conspirou para ele ser um gigante, o mais transcendente dos ídolos do esporte, só equiparável ao americano Muhammad Ali. Trata-se do maior brasileiro da história, o atleta que curou nossos traumas de inferioridade e encheu nosso espírito de orgulho e autoconfiança. Ele espelha momentos de glória e alegria de nossa existência. Sem ele não seríamos quem somos.
Quanto à sua eternidade, nem se discute.
Pele did it first pic.twitter.com/zQ4bJmBBHP
— Vala Afshar (@ValaAfshar) December 23, 2022