Pelé falou sobre o povo preto em muitas oportunidades, mas o silenciaram. Por Luan Araújo

Atualizado em 30 de dezembro de 2022 às 23:17
Pelé em entrevista ao Jô Soares em 1995. Foto: Reprodução

Pelé, o Rei do Futebol, que nos deixou nesta quinta-feira (29), sempre foi cobrado mais do que qualquer outra pessoa para se posicionar sobre as causas referentes aos interesses do povo negro.

Em texto publicado ontem, logo após sua morte, expliquei o porquê de ele não precisar ser cobrado por isso. Que só sua presença e seus atos já nos representavam de uma forma profunda.

Mas tivemos vezes em que o cidadão Édson Arantes do Nascimento se pronunciou sobre assuntos do povo preto. E em certos momentos, ele foi silenciado pelo poder vigente.

O caso mais célebre ocorreu em 1995 quando Pelé, então Ministro dos Esportes do governo de Fernando Henrique Cardoso, defendeu que o povo negro, maioria no país, votasse em políticos negros para que o povo preto resolvesse seus problemas de forma mais fácil.

E também falou na época que pessoas pretas não tinham a pecha de corruptas, como os políticos brancos tinham.

A classe política oligárquica, na época, criticou o ex-jogador de forma contundente. Então presidente da Câmara dos Deputados, Luís Eduardo Magalhães, membro da maior oligarquia política da Bahia e falecido em 1998, chegou a comentar ao jornal Folha de S.Paulo até que “iria fazer uma guerra” contra as intenções de Pelé.

Chega a ser irônico que, 27 anos depois desse ataque a Pelé, o sobrinho de Luís Eduardo, ACM Neto, tenha tentado de forma até bizarra criar empatia com os eleitores pretos da Bahia, que rechaçou desta vez o Carlismo nas urnas.

Dias depois, Pelé participou do programa “Jô Soares Onze e Meia” (SBT), onde reafirmou suas intenções:

E tivemos outras declarações de Pelé sobre ancestralidade ao longo do tempo. Em 1988, ano do centenário da Abolição, quando ele afirmou que as dores sofridas pelos antepassados também foram um símbolo de resistência:

Em campo, Pelé comentava sobre as ofensas racistas que sofria em campo. Na final da Libertadores de 1963, por exemplo, o Santos enfrentava o Boca Juniors em Buenos Aires na partida de volta após vencer o jogo disputado no Brasil por 3 a 2.

No filme “Pelé Eterno” (2004), o Rei relata que ele e os companheiros eram xingados a plenos pulmões de “Macaquitos del Brasil” após o time argentino abrir o placar. No segundo tempo, a resposta veio em campo, com a vitória santista por 2 a 1, com o gol da vitória marcado por Pelé.

Em entrevista à revista Veja em 2017, Pelé comentou sobre um encontro com Nelson Mandela, então presidente da África do Sul, onde ele se sentiu tocado: “Quando penso no racismo brasileiro, eu me lembro sempre do encontro com o Nelson Mandela, quando eu era ministro de Esportes do governo do Fernando Henrique Cardoso. Foi emocionante. O Mandela, com toda aquela grandeza e história, foi objetivo comigo: ‘Pelé, puxa vida…Como pode um país como o Brasil, tão lindo, sem conflitos segregacionistas como os da África do Sul, ter de conviver com tanta fome, com tanta miséria — e com o racismo?’. Nem soube o que falar, fiquei envergonhado”, afirmou o Rei na época.

A amizade que ele mantinha com líderes como o próprio Mandela e o ex-boxeador Muhammad Ali também tocava Pelé em pontos sensíveis. E o fato dele ter ganhado o mundo o fez criar essa consciência.

E talvez Ali, involuntariamente, tenha sido uma régua muito cruel com a que Pelé teve que conviver no seu auge. Ali era abertamente ativista e chegou a perder seu título mundial de boxe após se recusar a ir à Guerra do Vietnã. Mas sempre temos que lembrar do contexto dos dois países. Querendo ou não, Ali vivia em uma democracia. Pelé, passou a maioria do seu tempo como atleta de futebol na sangrenta ditadura militar da qual o Brasil sofreu por 21 anos.

O curioso é que, quando veio os sinais de abertura política, o Rei do Futebol aceitou ser fotografado por Ronaldo Kotscho, da PLACAR, com uma camisa da Seleção Brasileira pedindo eleições diretas para presidente, em uma capa história da revista em 1984.

Pelé tinha noção do poder que ele tinha por ser o maior atleta do mundo e também a personalidade mais conhecida do planeta.

O poder oligárquico do Brasil, também. E por isso, nas vezes em que o Rei se pronunciou, tratava sempre de minimizar esses posicionamentos. Se só com a bola no pé ele mudou a forma que o próprio país via o negro, imagina se a voz dele ressoasse ainda mais?

Pelé, por si só, já era um símbolo de excelência e poder preto. E era realmente preocupado com a condição de seus iguais. Para proteger o mito da “democracia racial”, oligarcas tentaram esconder esse lado. Cabe a nós sempre lembrarmos dele.

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