Publicado originalmente em O Cafezinho
Em seu discurso de posse, Fernando Haddad foi cuidadoso. Intelectual treinado nos embates da política, o novo ministro da Fazenda é consciente das armadilhas retóricas que um governo de esquerda sempre enfrenta no campo econômico.
O governo Bolsonaro estourou o teto de gastos em dezenas de bilhões de reais, cortou dinheiro de infra-estrutura, educação e saúde para fazer despesas eleitoreiras, irresponsáveis. No início do governo Bolsonaro/Guedes, apenas 28,8% das crianças pretas entre 6 e 7 anos eram analfabetas. Ao final de 2021, esse número saltou para 47,4%.
Sim, houve a pandemia, que prejudicou imensamente a rotina escolar, mas outros países enfrentaram o problema com políticas públicas inteligentes, evitando a desgraça que se abateu por aqui. As ações do governo da Coreia do Sul, por exemplo, no campo da educação infantil durante a pandemia, foram apontadas, num estudo da Unicef, como um modelo.
Apesar desses números trágicos, que apontam para uma queda brutal da competitividade da mão de obra nacional, Guedes é alguém reconhecido pelas elites do Brasil e do mundo como um dos seus. Economista formado na escolha ultraliberal de Chicago, banqueiro, guardando seu dinheiro em paraísos fiscais, o poderoso ministro da Economia de Bolsonaro era venerado por uma mídia que tornou-se, há tempos, um mero órgão de relações públicas do sistema financeiro.
Aliás, um dos trunfos inesperados do PT, que lhe ajudou a desconstruir o governo e a derrotá-lo nas eleições, foi essa burrice primeva de Bolsonaro e do bolsonarismo, de hostilizar seu maior aliado, o jornalismo corporativo brasileiro, que deve ser o mais dogmático, ortodoxo e conservador do planeta em matéria de economia e que, por consequência, sempre sustentou, com entusiasmo, as ações e omissões de Paulo Guedes.
Um ministro da Fazenda identificado como alguém de esquerda, num governo chefiado pelo Partido dos Trabalhadores, não receberá jamais o mesmo tratamento amistoso e familiar.
Por isso mesmo, o desafio de Haddad não se dá apenas no campo das ações concretas do ministério, ou dos índices econômicos que ele deve perseguir. É também retórico, ideológico, político.
Para isso, espera-se que o ministro tenha estratégias de inteligência e comunicação compatíveis com os desafios que tem à frente.
O bolsonarismo é burro, mas seus financiadores, nem tanto. Não deve demorar muito para que alguns setores financeiros entendam que toda aquela energia golpista disperdiçada na porta dos quarteis era alimentada, no fundo, por medos e egoísmos muito semelhantes ao que sentem operadores da bolsa.
Não é preciso ser vidente, portanto, para prever que o grito “SOS Forças Armadas” irá se converter em breve em “SOS Mercado”.
O maior empecilho para a implementação de políticas de desenvolvimento por parte de governos progressistas, de orientação popular, é a hostilidade orgânica, quiçá milenar, entre essas administrações e as camadas superiores da hierarquia social. Keynes, idealizador de uma doutrina econômica que preconizava políticas de pleno emprego e investimento público anticíclico, sempre alertou para isso em seus livros e artigos.
A saída democrática é apenas uma: fazer a batalha da opinião pública. Foi o que Keynes e seus seguidores fizeram, com sucesso. Os países que abraçaram suas ideias, e adotaram políticas audaciosas de bem estar, desenvovimento, fomento à pesquisa, experimentaram décadas de grandes avanços sociais, econômicos e científicos.
Se Haddad conciliar ações econômicas concretas, audaciosas, com uma estratégia eficiente no campo da batalha da opinião, poderá ser bem sucedido. Isso exigirá lançamento de livros, revistas, podcasts, estudos, vídeos, infográficos interativos, até mesmo jogos, de maneira a mobilizar os estratos mais instruídos e engajados da militância democrática a lhe ajudar a vencer a guerra de ideias, a mais importante de todas.