Uma entidade missionária evangelizadora pertencente à Igreja Presbiteriana, a ONG Missão Caiuá, acumula pelo menos R$ 2,98 bilhões em pagamentos e R$ 3,05 bilhões em contratos celebrados com o poder público desde o ano de 2014, de acordo com dados do Portal da Transparência, do governo federal.
Os valores pagos representam uma média de repasse de R$ 909,3 mil por dia para a ONG religiosa de 2014 até 2022. Somente no dia 29 de dezembro do ano passado, que foi o último dia útil bancário do governo de Jair Bolsonaro (PL), foram revertidos para as contas da Missão Caiuá, por meio de seis depósitos, um total de R$ 40.896.977,03, ou mais de 40 vezes o valor médio de pagamento ao longo dos últimos nove anos.
Como apontou reportagem do jornal O Globo da última terça-feira (24), a Missão Caiuá recebeu, durante os quatro anos do governo Bolsonaro, R$ 872 milhões. E, de acordo com Júnior Hekurari Yanomami, presidente da Urihi Associação, a entidade e seus funcionários não se instalaram nas terras indígenas de seu povo nos últimos quatro anos.
Ou seja, segundo a reportagem do Globo, tudo indica que os salários foram pagos mas sem a execução correta do serviço. “O que houve foi descaso e crime. O dinheiro foi mal gasto e mal planejado. Quase tudo foi gasto com “aéreo”. Avião e helicóptero para levar profissionais dentro do território, mas apenas na hora da emergência, quando muitas vezes já é tarde demais. Como a ambulância do SAMU nas cidades. Não sobra nada para comprar medicamentos. O que a gente precisa é de prevenção, um plano de ação e compromisso com as vidas”, disse Júnior Hekurari Yanomami.
Não é de hoje que a ONG Missão Caiuá recebe recursos do governo federal com a missão de tratar da saúde de indígenas. Sempre de acordo com dados do Portal da Transparência, a entidade recebeu R$ 36,6 milhões em 2010 do Ministério da Saúde para serviços de atenção à saúde indígena. Em 2013, a soma chegou a R$ 334,7 milhões, indo para R$ 421,8 milhões em 2014.
Trata-se de um volume de recursos canalizado para entidades sem fins lucrativos apenas superado por aqueles revertidos para o Senai e para o Senac, entidades do chamado Sistema S, que recebem verbas oriundas de tributos trabalhistas e que não podem ser classificados como organização não governamental.
A Missão Caiuá recebe dinheiro para atendimento na maioria dos 34 distritos sanitários administrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Já teve (2014) em sua folha de pagamento nada menos do que um exército de 8,7 mil funcionários, sendo 5.000 agentes de saúde indígenas, em territórios em estados como Mato Grosso do Sul, Roraima e Rio Grande do Sul, que, em 2014, eram povoados por 422 mil índigenas aldeados, ou 64% do total nacional de 657,8 mil pessoas que então viviam em aldeias, conforme a Sesai.
A Igreja Presbiteriana do Brasil assim conta a história da sua missão:
A Missão Evangélica Caiuá foi criada em 28 de agosto de 1928, fruto do sonho de Albert Maxwell, pastor presbiteriano norte-americano que veio ao Brasil para investir na expansão do evangelho. Ao se instalar em solo brasileiro, o Rev. Maxwell dedicou atenção especial aos indígenas da região de Dourados (MS), da etnia Kaiowá.
Deparou-se com a difícil situação daquele povo, onde as mulheres e crianças ficavam em casa enquanto os homens trabalhavam na indústria da erva mate o dia inteiro. Então Maxwell entendeu que deveria cuidar, não só da dimensão espiritual do índio Kaiowá, como também de seu corpo e mente.
Atualmente, a ONG não informa o número de funcionários contratados, tampouco este dado se encontra disponível no Portal da Transparência, mas uma coisa é certa: se, conforme aponta o jornal O Globo, o exército de funcionários da ONG não está atuando nas terras indígenas nos últimos anos, o dinheiro revertido a eles deixou de cumprir sua função. Se é que está chegando até eles.
De fato, meses após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), em dezembro de 2016, pelo menos 80 funcionários do Hospital da Missão Evangélica Caiuá, localizado em Dourados, protestaram por causa do atraso de parte do salário de novembro e da segunda parcela do 13º. Responsável pelo atendimento de 15 mil indígenas das aldeias Bororó e Jaguapiru, o hospital fica dentro da reserva indígena.
“Neste mês, não pagaram o restante do salário de novembro e nem a segunda parcela do 13º. Não temos a quem recorrer, porque a Missão alega que não recebeu os recursos federais que vêm para a prefeitura”, contou uma funcionária da entidade, à época.
A Missão Caiuá, a Igreja Presbiteriana e o governo Bolsonaro
A Missão Caiuá é administrada por três ramos da denominação presbiteriana: a Igreja Presbiteriana do Brasil, a Igreja Presbiteriana Independente e a Igreja Presbiteriana Indígena. Está onde está para cuidar da saúde dos corpos de indígenas, mas mantém sete templos presbiterianos para tratar das almas só nos arredores de áreas indígenas do Mato Grosso do Sul, que concentram 71 mil aldeados.
A poucos quilômetros da reserva, mantém também uma fazenda de 360 hectares arrendada para sojicultores, que rendia à Missão algo “entre R$ 15 milhões e R$ 20 milhões” em 2014, segundo dados fornecidos pelo então secretário-geral da Missão, reverendo Benjamin Bernardes, da Igreja Presbiteriana do Brasil. Quer dizer, a Caiuá é financiada não apenas pelo governo federal, mas também pelo agronegócio.
Quando uma entidade passa a receber dinheiro de determinado grupo econômico, passa também a atender, em alguma medida, aos interesses daqueles que a financiam. Com a Missão Caiuá, não é diferente.
No dia 28 de abril de 2018, o jornalista Maurício Ângelo, da Mobilização Nacional Indígena (MNI), publicou reportagem com o seguinte título: “Para a saúde da mulher e da criança indígenas sobram promessas e faltam soluções“. Nela, há o depoimento de uma enfermeira que mostra que, além de indígenas, a Caiuá também passou a servir a outro público. Leia trecho abaixo (os destaques foram inseridos pela reportagem do DCM.
Dayane Bernardo Farias, do povo Terena, da Terra Indígena Buriti, do Mato Grosso do Sul, é enfermeira formada há dois anos mas que não consegue prestar atendimento ao seu povo por disputas políticas locais e processos de contratação duvidosos feitos pela Missão Caiuá, entidade terceirizada, com sede em Dourados, escolhida pela Sesai como responsável pelas contratações no Mato Grosso do SUL e, até o início de 2018, em outros 19 distritos sanitários (DSEIS) pelo país.
“É doído falar, mas existe uma influência partidária da Caiuá e da Sesai muito grande lá dentro. Isso faz com que eu não tenha espaço para trabalhar. Já recebi propostas para mudar de lado, mas jamais vou me juntar aos ruralistas. Prefiro ficar sem trabalhar lutando pelo meu povo do que virar pro lado dos ruralistas e conseguir trabalho”, conta.
No inicio de 2018, a Sesai iniciou chamamento público para escolher as entidades terceirizadas que irão realizar o atendimento à saúde indígena em todos os DSEIs do Brasil. Embora tenha assumido publicamente em 2017 que não participaria de novos editais da Sesai e deixaria de atuar na saúde indígena, a Missão Caiuá – que recebeu mais de R$ 2 bilhões do governo federal entre 2012 e 2017 – acaba de vencer a nova licitação para seguir atuando no Mato Grosso do Sul.
A Missão Caiuá não foi o único braço presbiteriano a receber verbas bilionárias e estreitar laços com o governo federal ao longo do governo Bolsonaro. Entre eles também está a entidade evangelizadora Jovens com Uma Missão (Jocum). Trata-se de uma missão presbiteriana de origem norte-americana, que no Brasil se associou com a ONG Atini, criada pela ex-ministra dos Direitos Humanos e atual senadora, Damares Alves (Republicanos-DF).
Damares é frequentadora de púlpitos presbiterianos pelo Brasil desde, pelo menos, 2014. Sempre relatando supostos casos escabrosos de violência contra crianças, infanticídios, abusos sexuais, exposição precoce a ensinamentos transviantes. Para quem tem estômago, segue o exemplo abaixo, em um “Culto de Domingo” da Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte.
A senadora criou a Atini em parceria com missionários da Jocum, entidade que seu ministério achou por bem indicar para compor uma missão de primeiro contato com índigenas isolados na Floresta Amazônica.
Enviou como representante uma outra indígena, que havia sido retirada de sua tribo aos nove anos, por missionários da Atini e da Jocum, e que por mais de 15 anos fora mantida vivendo com novos pais, indicados pelos próprios missionários. Foi enviada na primeira missão do Estado brasileiro de abordagem a índigenas que nunca haviam tido contato com o homem branco, para servir de exemplo.
Atualmente, tanto a Atini como a Jocum são investigadas pelo Ministério Público Federal em virtude de acusações de sequestro e promoção de adoções clandestinas de crianças indígenas retiradas de aldeias onde atuavam missionários das duas entidades.
Por fim, há o colégio e a Universidade Presbiteriana Mackenzie, apoiadores e arregimentadores de trabalho voluntário para a ONG Missão Caiuá.
Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, é pastor presbiteriano. Já foi vice-reitor e reitor do Mackenzie, e é vice-presidente do conselho deliberativo do Instituto Presbiteriano Mackenzie, entidade mantenedora da universidade.
O pastor foi indicado ao cargo em julho de 2020. Dois anos depois, deixou o cargo e foi preso, no bojo de uma investigação que envolvia pagamento de propinas por meio de… barras de ouro extraído de garimpos ilegais.
Além de Milton Ribeiro, em janeiro de 2020, o então reitor do Mackenzie, Benedito Guimarães Aguiar Neto, foi nomeado presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão ligado ao MEC que atua na pós-graduação. Aguiar Neto era reitor da instituição desde 2011.
O então reitor, em outubro de 2019, defendeu a abordagem educacional do criacionismo como um “contraponto à teoria da evolução”. Ele também anunciou que o Mackenzie ampliaria os estudos do chamado Design Inteligente — teoria que afirma que a vida e o universo seriam obra de um “ser inteligente”.
Com essa turma, aumentaram as verbas públicas que vertem para a entidade norte-americana. Em maio de 2021, por exemplo, Milton Ribeiro foi visitar o Hospital Universitário Evangélico Mackenzie (HUEM) e a Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná (Fempar). Foi cortar a fita de inauguração de um novo laboratório, uma nova área de descanso para médicos residentes e uma nova ala de atendimento de crianças autistas, capaz de receber 500 pacientes.
Tudo pago com dinheiro público, por meio de convênios assinados em 2019 que entregaram o hospital e a faculdade aos cuidados do Mackenzie. Assim explicou, na ocasião, o presidente do Instituto Presbiteriano Mackenzie (IPM), José Inácio Ramos:
Quando assumimos a condução do hospital, no início de 2019, a situação era crítica. O Mackenzie está promovendo uma verdadeira transformação para tornar esta instituição a melhor possível para atendimento da população. Da mesma forma com a Fempar. Encontramos a faculdade com uma série de problemas, contudo a maneira Mackenzie de gerir está a transformando em uma instituição de ponta
Mas nem todo o apoio e parceria que o governo Bolsonaro prestou à Igreja Presbiteriana, seus associados e entidades relacionadas garantiu o sucesso da única tentativa de Jair Bolsonaro de visitar uma universidade no Brasil em todos os seus quatro anos de mandato.
No dia 27 de março de 2019, o então presidente da República planejou uma visita à Universidade Mackenzie, em São Paulo, em meio a eventos relacionados ao aniversário do golpe cívico-militar de 31 de março de 1964.
Os estudantes paulistas, no entanto, colocaram Bolsonaro para correr. Ele cancelou a agenda assim que viu as centenas de mackenzistas que se aglomeravam na porta da universidade, esperando. Uma vez covarde, sempre covarde.