POR STEFANI COSTA, de Lisboa para o DCM
A democracia é realmente capaz de nos proporcionar momentos únicos. Desde agradecimentos a Deus até exaltação ao ditador Salazar, a LIDE Brazil Conference reuniu banqueiros, políticos e empresários em um fim de semana marcado por mais um escândalo envolvendo Bolsonaro e suas tentativas de usurpar o poder.
Antes mesmo do nascer do sol, dezenas de jornalistas já formavam fila no hall de entrada do Hotel Ritz. Como bem lembrou o ministro Ricardo Lewandowski, “o quarto poder” da República também foi convidado para a “boquinha”.
E se já não nos bastasse o constrangimento em ver Michel Temer abrindo um painel no qual o tema era “valores institucionais e caminhos democráticos”, a plateia formada por aqueles que querem ajudar o Brasil (desde que não seja com “política Robin Hood”, como disse Abílio Diniz) também foi brindada pela ‘ilustre’ mediação de Merval Pereira, grande porta-voz da Operação Lava-Jato na imprensa brasileira e figura marcante durante o golpe de 2016 contra a ex-presidente Dilma Rousseff.
O local escolhido para receber o evento criado por João Doria (ex-governador de São Paulo) foi inaugurado em 1959. Esse pormenor só ganhou relevância após o “chairman” Luiz Fernando Furlan contar a história do estabelecimento, ressaltando que “Salazar se ressentia muito por não ter um hotel internacional em Portugal.”
Com uma arquitetura pujante, de pilares largos, cortinas robustas e lustres exuberantes, o salão principal cairia como uma luva em alguma película de Leni Riefenstahl.
Mesmo sem a participação de autoridades portuguesas, que declinaram todos os convites feitos pela organização, a mentalidade colonizada de uma parcela das pessoas ali presentes evidenciou-se em vários momentos.
Começando pelo próprio embaixador do Brasil em Portugal, Raimundo Carreiro Silva, que resgatou a “pátria mãe”, e o ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Humberto Martins, que fez questão de dizer que os dois países compartilham da mesma língua e religião. Como se a definição de Estado laico não existisse na Constituição brasileira.
Dois minutos de prosa
Antes de mergulharmos nas falas daqueles que acreditam que a “solução do Brasil” está nas mãos dos capitalistas, é preciso destacar a postura de Gilmar Mendes ainda nos corredores do hotel.
Conhecido entre jornalistas por “gostar de falar”, o decano do Supremo Tribunal Federal roubou a cena e não hesitou em responder algumas questões a respeito das tentativas de golpe de Estado que vêm se desenhando ao longo dos últimos anos.
Questionado a respeito do caso do senador Marcos Do Val, Gilmar afirmou que o país “estava sendo governado por gente de porão”. O ministro ressaltou ainda a importância de se debater sobre a reforma das Polícias e Forças Armadas que, segundo ele, “estão politizadas”.
Quem te conhece sabe
Aos que usufruem de parte do PIB de um país de dimensões continentais e que se desenvolveu a base da exploração de muitos trabalhadores imigrantes, ouvir citações e elogios a bilionários não é novidade. Porém, quando tais afirmações são jogadas ao vento na terra responsável por mais de 3 séculos de escravidão de pessoas negras e indígenas, o elitismo classista se materializa diante de nossos olhos.
Um exemplo que ilustra o parágrafo anterior, foi a fala do prefeito de Curitiba, Rafael Greca, que disse em seu discurso ser “encantador” ver os filhos da classe operária desenvolvendo tecnologia. O mesmo Greca que, em 2021, anunciou um projeto para multar quem distribuísse comida às pessoas em situação de rua. E como não recordar a famigerada afirmação de 2016, quando revelou que ao colocar um pobre pela primeira vez dentro do seu carro, “vomitou por causa do cheiro”.
Outro que também chegou ‘lambuzado de verniz’ foi Luís Roberto Barroso, enfatizando que a necessidade de uma reforma tributária no Brasil é “desesperadora”, e que o patrão ter que pagar mais imposto do que o empregado é só uma “questão de bom senso”. No entanto, vale relembrar que Barroso defendeu enfaticamente a ‘operação de Sergio Moro’. Ele não se incomodou em apoiar o projeto do ex-juiz que destruiu a economia de um país na obsessão de perseguir um político e criminalizar um partido. O que funcionou, na verdade, como um ‘abre-alas’ para que fascismo tomasse o poder.
Operação Tabajara
Houve também quem demonstrasse certa preocupação com o futuro do Estado de Direito e da democracia, mesmo que seja a da burguesia. Afinal, só ela é capaz de proporcionar um evento sobre “oportunidades” sem a presença de mulheres, indígenas, negros, pessoas com algum tipo de deficiência ou representantes da comunidade LGBTQIA+ na mesa de convidados.
Aos indígenas, só sobrou espaço no momento da piada – ainda que não tenha sido “intencional”. Para os poderosos, a diversidade só interessa nos comerciais das grandes empresas.
E foi na fala de Alexandre de Moraes que esse resquício de preocupação veio à tona. Como relator nos principais processos que miram Bolsonaro, o ministro ressaltou a importância de se fortalecer de forma “rápida e eficiente” as legislações dos países para evitar que a democracia seja “corroída” por políticos populistas.
Segundo Moraes, a discussão sobre a regulamentação das redes sociais é urgente, pois a livre expressão foi capturada pela extrema-direita e transformada em um mecanismo de lavagem cerebral. Assim, plataformas como o Telegram têm papel fundamental em espalhar essas ideias.
O ministro do Supremo Tribunal Federal complementou dizendo que a responsabilização dessas redes sociais não pode ser menor do que as aplicadas às mídias tradicionais e que essas plataformas apenas precisam deixar de serem tratadas como empresas de tecnologia, pois elas ganham e arrecadam com publicidade.
Somente uma legislação internacional, através de um acordo (como se faz contra o tráfico humano, de drogas ou de armas) será capaz de impedir ataques antidemocráticos pelo mundo. No mais, Moraes fez questão de lembrar que o Brasil respondeu às tentativas de golpe de Estado de forma mais rápida e segura do que os EUA.
É provável que poucas pessoas queiram saber o que um ministro do Supremo faz em sua vida privada. Entretanto, quando ele aceita participar de um encontro com os “donos do capital”, mesmo que por videoconferência, a história muda de figura e a prestação de contas passa a ser uma obrigação.
E é justamente aí que chegamos ao ápice do evento que ainda prometia “entregar” no dia seguinte uma rodada sobre “economia e mercados”. Ao ser questionado por Furlan sobre “ser famoso como um jogador de futebol”, Alexandre de Moraes respondeu aos risos: “ganho bem menos do que um”.
Da exceção à regra
Quando muitos acreditavam ter ouvido de tudo no primeiro dia de Conferência, eis que, no segundo e último dia do evento, Abílio Diniz surpreende ao dizer que a “Revolução dos Cravos foi um golpe de Estado.”
Essa afirmação do empresário foi em referência à sugestão de Michel Temer, que, no dia anterior, havia sugerido a implementação de um sistema semipresidencial no Brasil por via de uma “revolução pacífica”, trocando os cravos por rosas. A metáfora foi a forma que o ex-presidente golpista encontrou para reafirmar que esse sistema poderia evitar “traumas institucionais”.
Para Diniz, a verdadeira revolução aconteceu no ano seguinte com a chamada “Revolta dos Capitães”, onde a “parte de baixo” do exército se rebelou contra a cúpula para tomar conta do país. “Em março de 1975, nós estávamos aqui, debaixo da ponte em Alcântara, na sede da empresa e com o restante da diretoria. À noite, nós fomos impedidos de sair por cerca de uma 500 pessoas que estavam embaixo gritando ‘o povo unido nunca será vencido. Morte aos capitalistas!’”
Obviamente que aquilo que Diniz chamou de “aula de história” sobre Portugal deixou muitas pessoas desconcertadas. Alguns jornalistas chegaram a rir quando o bilionário tentou reescrever a história de outro país, assim, sem nenhum constrangimento.
Entre encontros e reencontros das famílias que ocupam os mesmos lugares desde os tempos de Cabral, surge o presidente da LIDE, João Doria Neto, que iniciou os trabalhos soltando a primeira pérola do dia.
Ao convidar Luiza Trajano para ocupar o seu lugar à mesa, o filho do ex-governador de São Paulo mandou a clássica “era para ter mais mulheres aqui, mas você representa muito bem todas elas.”
A história da fundadora das lojas Magazine Luiza realmente se difere de muitos que estavam ali. “Eu nasci com a barriga no balcão”, disse ao contar um pouco de sua trajetória antes de se tornar uma das mulheres mais ricas do país. Ao afirmar que gerar emprego é ser protagonista no Brasil e que é preciso “dar para muitos o que é privilégio de poucos”, Luiza trouxe um vídeo institucional com a frase “humanos virtuais são lucrativos.”
O exemplo de Luiza é só mais um entre muitos que abraçam o discurso da meritocracia, reforçando a velha ideia de que se você trabalhar muito, um dia será rico, e, quando chegar lá, será sua a responsabilidade de mudar a realidade das outras pessoas.
O problema é que muitos de nós sabemos que isso não é possível dentro de um sistema de mais valia, em que parte do valor da força de trabalho do proletário durante a produção não é remunerada pelo patrão. Essa é a famosa ‘alienação do indivíduo’, Luiza é só uma exceção à regra.
Sem vitimismo
Enquanto Luiz Carlos Trabuco (presidente do Bradesco) pedia para que as pessoas refletissem sobre o que aconteceu com os Yanomamis, Isaac Sidney (presidente da FEBRABAN) reclamava que no Brasil é “muito caro emprestar dinheiro”.
E nessa ‘espiral surrealista’ sobre “o país do futuro que nunca chega”, o prefeito Ricardo Nunes encheu os pulmões para dizer que todas as crianças de São Paulo têm vaga em creches.
Em seguida, o governador do Rio de Janeiro e aliado de Bolsonaro, Cláudio Castro, chamou Nunes de “primo rico do sudeste”, antes de tentar convencer os presentes de que a “cidade maravilhosa” está recuperando a “credibilidade” para o empreendedorismo.
Durante toda a semana, a participação da Ministra do Planejamento e Orçamento do Brasil, Simone Tebet, foi uma dúvida. Poucas horas antes do início do segundo dia de conferência, ninguém sabia confirmar se ela realmente faria sua participação por videoconferência. Todavia, lá estava ela.
A presença de Tebet foi a mais esperada da LIDE Lisboa. Principalmente por ela ser uma velha conhecida dos participantes do evento. Ruralista e fazendeira, sua carreira política vem de família. Se alguém tivesse dúvidas sobre isso, era só prestar atenção na quantidade de vezes que o pai, Ramez Tebet, foi citado pelos colegas da ministra para sanar tal dúvida.
Simone abriu a fala prestando uma homenagem ao “amigo” João Doria pelo seu trabalho em São Paulo durante a pandemia de covid-19. Ela ressaltou a importância das campanhas de vacinação e da necessidade do país voltar a investir em ciência. Tebet também chamou os atos de 8 de janeiro de “barbárie” e afirmou que o processo eleitoral “trouxe de volta ao Brasil um democrata”. Além do mais, disse também que entre ela e o presidente Lula existem divergências, mas não antagonismos.
A ansiedade para que Simone Tebet comentasse sobre a situação dos povos Yanomamis predominou entre os colegas da imprensa.
No mais, sobre esse tema a ministra do Planejamento não teceu nenhum tipo de observação. No entanto, falou a respeito da crise econômica agravada pelo último governo, que deixou 125 milhões de pessoas sem alimentação básica e mais de 33 milhões na pobreza absoluta.
Tebet também não hesitou em dizer que esse será um de seus maiores desafios ao lado do também ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que, segundo ela, “tem sido um grande parceiro”.
Curioso é que a pergunta sobre como o Brasil vai combater a fome partiu de Geyze Diniz (esposa de Abílio Diniz). Ao apresentar um projeto chamado “Pacto Contra a Fome”, ela falou que uma das soluções pode estar no combate ao desperdício de comida. O que chega a ser, no mínimo, intrigante, ainda mais ao sabermos que o Brasil possui um dos maiores produtores de alimentos do mundo e o maior produtor de arroz orgânico da América Latina: o MST.
Depois de horas ouvindo banqueiros, empresários e políticos propondo ideias fastidiosas para sanar os problemas de uma realidade que poucos ali realmente conhecem, ainda sobrou tempo para que João Doria Neto nos entregasse a segunda pérola do dia.
Ao direcionar uma pergunta à única mulher da mesa, o presidente da Instituição pediu para que ela respondesse, mas “sem vitimismo”.
É claro que Luiza Trajano não deixou barato. De maneira firme e espontânea respondeu que “homem inteligente coloca mulheres no Conselho de suas empresas”.
Ao fim do painel “Economia e Mercados”, a organização anunciou um almoço especial no Palácio de Cascais com a presença do presidente da Câmara Municipal, Carlos Carreiras.
Conhecida como a região que hoje abriga os “novos ricos” do Brasil, há quem diga que se continuar nesse ritmo, em breve Manoel Carlos abandonará o Leblon para fazer uma novela aqui.
Brincadeiras à parte, é hilário pensar que a prefeitura local disponibilizou as dependências de um museu para abrigar um almoço privado.
Decerto essa foi a melhor tentativa que a organização da LIDE encontrou para anunciar na próxima edição da conferência (em Londres) que um político da “pátria mãe” marcou presença.