Publicado originalmente em A Terra é Redonda
Em um mês e meio, o governo Lula tomou diversas medidas que redundaram em melhoria para diversas áreas. Entre elas, a Medida Provisória que reestrutura o programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida”. O programa de habitação popular ampliou o limite da primeira faixa de renda para até R$ 2.640. As pessoas com menor renda voltam para o programa e com subsídio. Outras frentes de trabalho atacadas com sucesso foram a salvação dos Yanomamis, vítimas de verdadeiro genocídio, o combate ao garimpo ilegal e ao desmatamento na Amazônia.
No plano internacional, o novo governo rapidamente retira o Brasil da condição de pária para voltar a desempenhar um papel importante na comunidade mundial. Um dos marcos principais dessa caminhada foi a visita de Lula aos EUA. É sobre essa visita que nos debruçamos para tecer as considerações abaixo.
Da conversa entre Lula e Biden, três pontos merecem ser destacados. Em primeiro lugar, as juras de amor à democracia e as críticas à violência da extrema direita que lá invadiu o Capitólio e aqui invadiu e destruiu as sedes dos três Poderes, com o apoio direto de PMs e militares. Esse ponto é comum aos EUA e ao Brasil, dois países, entre muitos outros, em que a democracia entrou em declínio e foi ameaçada.
No caso do Brasil, a democracia, por mais formal que seja, passou a ser bandeira da esquerda, inclusive em prejuízo de outros pontos estratégicos de sua agenda, tendo em vista a ameaça de uma ditadura fascista por parte da extrema direita. O vandalismo bolsonarista que destruiu em Brasília as sedes dos Três Poderes da República em 8 de janeiro, com o apoio de PMs e também de militares – até hoje impunes – mostra a que ponto chegou a degradação da democracia no Brasil que se tornou um verdadeiro Estado de Exceção, reunindo elementos democráticos e ditatoriais em conflito.
Em segundo lugar, o ponto levantado por Lula: meio ambiente e a proteção da Amazônia, com o convite para os EUA irem além da retórica e passarem a contribuir para o Fundo da Amazônia que recebe hoje doação principalmente da Noruega e, em menor proporção, da Alemanha.
Para os ambientalistas, tem um sabor especial ouvir Lula dizer hoje o que os ecologistas diziam já antes dos anos 1980 e eram estigmatizados por todas as lideranças partidárias, de direita, de centro e de esquerda que, por ignorância, consideravam a questão ambiental inexistente no Brasil. E a mídia zombava, chamando os ambientalistas de alfacinha, viados e outras gracinhas.
Agora, na reunião com Joe Biden, Lula foi direto ao ponto, destacando a necessidade de uma governança global (não confundir com governo mundial): “A questão climática, se não tem uma governança global forte, que tome decisões que todos os países sejam obrigados a cumprir, não vai dar certo…Mas alguma coisa temos de fazer para obrigar os países, os congressos e empresários a acatar decisões que tomamos em níveis globais”, insistiu. “A gente tem que ter uma governança global, com mais autoridade, e que outros países possam participar do Conselho de Segurança para que algumas decisões de ordem climática sejam tomadas em nível internacional”.
Em terceiro lugar, a prioridade de Joe Biden era o Brasil participar diretamente da atual guerra na Europa apoiando a Ucrânia. A proposta para o governo brasileiro enviar armas para ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa esbarraria em enormes dificuldades políticas, diplomáticas e até mesmo éticas. Afinal, por que não enviar armas também para a oposição à ditadura religiosa do Irã, a oposição ao regime ditatorial dos Talibãs no Afeganistão, para as minorias muçulmanas reprimidas dos Chechênios na Rússia ou dos Uigures na China? Ou armas para ajudar a etnia curda reprimida pela Turquia ou a minoria não-muçulmana reprimida por Mianmar? Ou a minoria muçulmana xiita reprimida pela Nigéria? Ou ainda para ajudar a oposição ao regime da Arábia Saudita, considerada a ditadura mais sanguinária do mundo?
Minorias étnicas reprimidas é o que não falta no planeta. Aqui mesmo, no Brasil, tínhamos até há pouco o genocídio dos Yanomamis que parece estar chegando ao fim. Por que mandar armas só para os ucranianos? Provavelmente, não é apenas porque são louros e europeus. Talvez porque Joe Biden e a mídia ocidental considerem o Ocidente sob hegemonia norte americana o centro do mundo que, entretanto, parece caminhar lenta, mas firmemente para a multipolaridade.
Além disso, essa proposta ignora as razões da indefensável invasão da Ucrânia por uma Rússia sentindo-se cercada militarmente pela OTAN controlada pelos EUA que, até agora, são os grandes vencedores: essa guerra fortaleceu o poder dos militares americanos, aumentou o lucro dos empresários da indústria bélica exportadora de armas, garantiu emprego para os trabalhadores e não morreu nenhum americano.
A grande derrotada é a Europa: os EUA sabotaram o gasoduto Nord Stream 2 que levaria gás natural da Rússia para a Alemanha e para o resto da Europa que sofre hoje inflação no preço dos alimentos e da energia. A invasão destruiu boa parte da Ucrânia, levou à morte milhares de pessoas, ucranianos, russos e população civil e acabou fortalecendo a OTAN e os EUA.
A posição fascista dos militares ucranianos, que chegaram a pendurar um retrato de Adolf Hitler na parede do quartel de Azov, o mais importante da Ucrânia, a corrupção de Walodymyr Zelenski, que já figurava na lista dos Panama Papers e agora foi acusado de vender no mercado negro parte das armas doadas pelos americanos, a pressão da OTAN contra a Rússia, nada justifica a invasão que Vladimir Putin imaginou que seria relâmpago e já dura quase um ano. Quanto mais tempo durar a guerra, melhor para os EUA, pior para a Rússia.
Os EUA bombardearam dezenas de países depois da Segunda Guerra Mundial. Segundo divulgado por fontes diplomáticas chinesas em 27 de fevereiro de 2022, “dos 248 conflitos armados ocorridos entre 1945 e 2001 em 153 regiões do mundo, 201 foram iniciados pelos EUA, o que representa 81% do número total”. O complexo industrial militar americano não fica muito tempo sem guerra. Desta vez, fazem guerra por procuração. Deviam agradecer a Vladimir Putin.
Lembrando Talleyrand, o maquiavélico Chanceler e Primeiro Ministro da França em 1815 sob Luís XVIII, a invasão da Ucrânia, mais do que um crime, foi um erro. Erro que Lula denunciou. Ele só teve acertos em sua visita aos EUA, com reuniões importantes com o senador Bernie Sanders e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez. E ainda sugeriu a Joe Biden mudar a política em relação a Cuba e Venezuela.
A visita aos EUA foi um sucesso e Lula se destacou como líder mundial ao propor a criação de um G20 para a paz e se colocar como possível mediador entre a Rússia e a Ucrânia, com a simpatia da Alemanha e da França. É cedo para saber se isso vai ou não dar certo, mas o convite para Lula participar do G7 é um indicador da ressurreição do Brasil como ator importante no cenário internacional. O que desde já se pode afirmar é que, em um mês, o Brasil, sob liderança de Lula, passou de pária a uma posição de destaque na comunidade mundial das nações.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).